A vida moderna

Um balanço perfeito entre um modo “cerebral” de fazer cinema e o inesgotável poder, muito físico, dos seres e dos lugares

Depois da “Fome”, a “Vergonha”: ao segundo tomo, a obra cinematográfica de Steve McQueen começa a parecer uma reflexão serialista sobre as misérias humanas, e talvez acabe aos sete, como os pecados. Já tínhamos gostado imenso de “Fome”, produto de um olhar fresco que tentava habitar a convenção (de um cinema “mainstream”, ou quase “mainstream”) para a rasgar, por dentro e com delicadeza, sem a pose sobranceira com que outros “artistas” se aproximam da “facilidade” do cinema. “Vergonha” sugere que “Fome” não foi um acaso, e que há que contar, de facto, com este olhar de McQueen.


“Fome” era um filme sobre a disciplina, a abnegação de um homem (que valia por Bobby Sands, célebre “mártir” do IRA) que fazia do seu corpo um campo de batalha sacrificial, simbólico, espécie de Cristo moderno. “Vergonha” não é a mesma coisa, desde logo porque muito menos referencial (sem as alusões históricas de “Fome”), mas certas características mantêm-se, é a história de um homem (outra vez Michael Fassbender) prisioneiro de uma prisão mais abstracta do que a de Sands: a sua rotina. Profissional, convivial, mas sobretudo, rotina de “sex addict”. De “Fome” a “Vergonha” cruzamos a linha entre a disciplina e a rotina, muito bem dada logo nos planos iniciais, com as caminhadas repetitivas e circulares de Fassbender dentro da sua redoma (o seu apartamento): quarto, casa de banho, quarto, casa de banho. É o tema do filme, na medida em que se pode dizer que a personagem, antes de estar viciada no sexo, está viciada na sua rotina, que torna o próprio sexo indistinto, habitual, quase “pacato”, sejam encontros fortuitos no metro, “call girls” ou pornografia no computador. Tanta indistinção, reforçada pelo que se mostra da vida profissional de Fassbender (empregado indistinto de uma firma novaiorquina cuja actividade nem sequer explicitada), configura possivelmente um comentário sobre a “vida moderna”, comentário “moral”, talvez mesmo “moralista”, como se fosse essa a “vergonha”, inescapável e precedente a tudo.

É a chegada de um elemento estranho, e no entanto familiar (a irmã, interpretada por Carey Mulligan), que vai pôr a rotina em crise - deixa de ser uma coisa neutra, defensiva e protectora, para se tornar vulnerável, ao pensamento e ao julgamento. É a “história” do filme, completa com descida aos infernos (a última noite) e improvável redenção (improvável porque McQueen corta o último plano antes de ser possível “provar” seja o que for).

Pelo brilho metálico e envidraçado dos ambientes em que Fassbender circula começa então a avançar a sujidade. A gente não a vê, propriamente, vê apenas um homem que se sente cada vez mais enlameado. Há um momento extraordinário, em que McQueen sugere admiravelmente um impulso “purificador”: é quando Fassbender, a meio da noite, veste o fato de treino, põe música clássica nos “headphones” e desde à rua para uma sessão de “jogging” que a câmara acompanha num magnífico “travelling” lateral de muitas dezenas de metros. É um momento que rebenta com os enquadramentos precisos, cerrados, com que o filme normalmente enclausura a personagem de Fassbender, como se se tratasse de “fugir” do filme, de sacudir a norma da “mise-en-scène” (e justamente por isto, é a cena que prova sem margem para dúvidas o total domínio da “mise-en-scène” a que McQueen chegou). A propósito de “mise-en-scène”, também há aqui, como em “Fome” (o diálogo entre Sands e o padre), uma extraordinária cena de conversa. O jantar, num restaurante, entre Fassbender e a colega de escritório que ele engatou ou quer engatar, num longo plano fixo, de campo muito aberto, onde a conversa “privada” (e no entanto, “pública”: há imensas mesas cheias à volta) está constantemente a ser interrompida por um solícito empregado de mesa cheio de sugestões para o menu. De resto, será com esta colega que Fassbender terá uma quase “pública” cena de sexo (num hotel de largas janelas envidraçadas sobre a baixa de Manhattan), cena, de resto, que por alguma razão faz pensar em Cronenberg (“Crash” / “Shame”: o emparelhamento não seria despropositado).

“Vergonha” é um filme doentio, que não explica a doença, e muito menos as causas, apenas põe hipóteses, sugere, expõe a acção como alimento da reflexão. Mostra em vez de ilustrar, em suma, num balanço perfeito entre um modo “cerebral” de fazer cinema e o inesgotável poder, muito físico, dos seres e dos lugares. Certamente um dos melhores filmes que veremos este ano.

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