Vida de insecto

Os insectos que crescem em sacos debaixo da pele humana ou debaixo dos dentes podem ou não existir, mas a paranóia é mesmo um vírus. Contamina Peter (Michael Shanon) e Agnes (Ashley Judd), algures num motel no meio do deserto, EUA. Como no quadro pendurado na parede: Peter vê ali pessoas, as pessoas que ali não se vêem.

Com "Bug", William Friedkin, 71 anos, sobrevivente da geração de rebeldes que nos anos 70 não conseguiu salvar Hollywood e que provavelmente também não sesalvou - é o realizador de "Os Incorruptíveis contra a Droga", "O Exorcista" ou "A Caça"... - entra, sem regresso, no casulo dos insectos.

Dito de outra maneira: Friedkin também quer ver e obrigar-nos a ver as pessoas que não se vêem.

Há, na origem de "Bug", uma peça de teatro de Tracy Letts. Mas é proibido aqui dizer: "É um filmeteatral" (esta outra versão também deve ser banida: "É um filme de terror"). Temos que pôr as coisas desta maneira: este vigoroso - e histérico; Friedkin sempre esteve próximo do "exploitation", não há nada a fazer - regresso de um cineasta arrumado como "has been", como uma das "casualties"de Hollywood, volta a carregar as baterias de intensidade do "huis clos". Exactamente como quemacorda um dispositivo já adormecido, ou morto, por tantas vezes ter sido usado e dele se ter abusado (isto quer dizer que "Bug" vai para além disso, ou seja, para além da pele).

Como se fosse uma primeira vez, como se fosse a (re)descoberta da vocação original de uma fórmula:captar a vibração dos que ficaram esquecidos num motel da existência, materializar a transformação desses "outsiders", inadaptados, marginais (como se quiser) nas figuras que povoam os nossos medos.

Espaço fechado com duas personagens de onde quase nunca se sai - há aqueles misteriosos planos deaproximação aéreos; há intervenções do exterior, mas são dizimadas pela lógica da paranóia que fervilhadentro daquele quarto -, e temos uma das proezas de "Bug", proeza porque o cinema interessa-se hojepouco por essa vocação demoníaca de invocar o invisível. É uma questão estética, de reactivação das energias de um cineasta, claro. Mas é tambémquestão política: dar visibilidade às zonas de segredo ou de exclusão. Isso identifica melhor o lugar deste filme. Afasta-o, por exemplo, das óperastrágico-eufóricas de Cronenberg ou do onirismo de Lynch, para falar cineastas e universos com quem"Bug" parece traçar tangentes - mas não vai por aí. Eis outra proeza de "Bug", então: o de tornar activos e actuantes, hoje, procedimentos, gestos, irrupções do cinema americano dos anos 70 - um certotipo de cinema paranóico - ou até de décadas anteriores, como a série B dos 50s. Fá-lo sem ser "à maneira de...", antes como se houvesse umacontinuidade natural entre o tempo do(s) medo(s), da invasão extraterrestre, do comunismo, doterrorismo, ontem como, gritantemente, hoje.

Peter e Agnes, as personagens de "Bug", crescem rapidamente em nós. Suspeita-se que o voluntárioexílio de Friedkin, nos últimos anos, como encenador, sobretudo de ópera, ajudou-o a dar-lhes carne e existência no espaço. Personagens assim não são vistas normalmente dentro do "quadro". Mas estão lá. O filme olha-as à lupa. Um dia, mostranos "Bug", prosa sensacionalista, eles far-se-ão explodir. Eles chamamse Peter e Agnes. Já se chamaram Timothy James McVeigh (1968- 2001), bombista de Oklahoma, ou Jim Jones (1931-1978), líder do culto Peoples Temple que levou o seu grupo ao suicídio por envenenamento, ou...

Estivemos a ver a vida dos insectos - gigantes.

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