A luz no fundo do World Trade Center

Oliver Stone, veterano da Guerra do Vietname, 60 anos, encontra-se em missão, espalhando a palavra por grande parte da Europa - tal como o fez na América para promover "World Trade Center", que esta semana chegou às salas portuguesas. É curioso que se encontre muito próximo - e talvez com ele se possa encontrar - de um outro cruzado, Al Gore, que está neste momento a mostrar ao mundo "Uma Verdade Inconveniente", o seu documentário sobre o estado do Planeta Terra. Mas não deixa de ser irónico: ao contrário de Gore, Oliver Stone, que nos deu filmes como "JFK" e "Nixon", "Platoon" ou "Assassinos Natos", olhares convulsos sobre o fim da inocência americana, sobre a América como experiência de negrume, tentacular, tenha deixado a Administração Bush fora do seu filme. O realizador tem resposta para isso: o seu 11/09 é uma história simples.

Centra-se em dois agentes da Port Authority de Nova Iorque, John McLoughlin (interpretado por Nicolas Cage) e Will Jimeno (Michael Pena), que ficaram presos por baixo dos escombros das Torres Gémeas de Nova Iorque. É uma história verídica. Mas é natural que os espectadores pudessem estar à espera de algo mais complexo, mais paranóico até, se calhar um filme não tão alinhado, sugerimos em conversa com o realizador no Festival de Veneza.

Isso não deve espantar: um filme carrega sempre a expectativa que a obra anterior criou. E o que é que aconteceu com "World Trade Center"? Acabou a ter o aplauso dos sectores mais conservadores da sociedade americana. Os mesmos que antes consideraram Stone o anti-Cristo (assim se manifestaram quando souberam que era ele o realizador escolhido para fazer "o" filme sobre o 11 de Setembro...), desataram a aplaudir "um dos filmes mais pró-americanos, mais a favor da família, da fé, mais a favor da masculinidade, mais patriótico e mais "God bless America" que se fizeram" - assim se escreveu. (E porque falamos de um cineasta que já viu a sua América através do turbilhão da conspiração... será que a conspiração aqui, brincou alguma imprensa americana, passa pela escolha de Stone para fazer passar a mensagem "God bless America"...?) "Bom, sabe" - Oliver solta um riso, quando o confrontamos -, "tenho feito imensas coisas controversas no passado, não haja dúvidas. Mas "JFK" e "Nixon" são filmes com estilos muito diferentes. Tudo o que posso dizer é que neste caso não havia necessidade dessa abordagem. Mas a história acaba por ser, de certa forma, controversa, porque aqueles dois homens escaparam com vida. É um milagre e isso foi emocionante para mim. É uma história extraordinária, nada convencional. Estas pessoas nunca expressaram sentimentos políticos. Fazê-lo, eu, através do filme, seria fazer outro filme".

E, comparando esta história à do tsunami Asiático, onde "o espírito humano conseguiu mostrar-se superior à adversidade", Stone prossegue, repetindo as palavras que, para espanto de muitos, proferira na conferência de imprensa de apresentação do seu filme em Veneza. Que "World Trade Center" comoveu os americanos, que o mundo está "numa idade das trevas e precisamos de nos unir", que "é no coração que está o fulcro da natureza humana" e que é o coração que une, porque "a política divide". Chegado aqui, não se livrou de ouvir por parte da imprensa... e então "J.F.K.", e então "Assassinos Natos", e "Nixon", e "Platoon", e "Nascido a 4 de Julho"... ? "Sim, fiz filme intensos, negros, sobre o Vietname, quando a América estava próspera. Isso não impediu que a América regressasse à maquinaria de guerra. Tenho razões, portanto, para estar deprimido. Mas agora que as coisas estão negras, é altura de fazer ao contrário, fazer um filme sobre a luz. O coração é que une, a política divide". Depois de ouvir esta linha de pensamento tão contraditória - porque a desilusão não se despega do desejo de luz - mais relevante se torna, mais do que lembrar os projectos politicamente agressivos do realizador, recordar que Stone vem de uma posição fragilizada na indústria de cinema americano. Com o desastre comercial de "Alexandre", precisa de ganhar espaço - e isso uma visão "God bless America" mais facilmente pode proporcionar. Nesse sentido, esta vitória (o sucesso de "World Trade Center") é também a medida de uma derrota - o falhanço (é ele que põe as coisas nesses termos) do projecto político do realizador Stone. Mas ainda é preciso considerar: "World Trade Center" é o primeiro filme de ficção, realizado por um americano, a reconstituir um dos episódios centrais da tragédia.

É fácil imaginar que terá sido mais fácil para o inglês Paul Greengrass arriscar distância emocional no seu "Voo 93". "Perdemos, de facto, a nossa perspectiva histórica", continua Stone. "Quero dizer: tenho 60 anos; presenciei muitas coisas no Vietname; vi JFK ser assassinado; o atentado de Oklahoma foi outro choque. Nos últimos 60 anos os americanos têm sofrido uma série de choques no seu orgulho. Se Al Gore tivesse sido eleito presidente, sinto que teria havido uma resposta moderada [ao 11 de Setembro]. Fui a favor da guerra no Afeganistão, senti raiva contra os terroristas e acho que devíamos ter ido atrás deles. Mas, em 2002, aquela energia, aquela ênfase transferiu-se para o Iraque. Condenei este acto desde o início e fui penalizado por isso. Levei uma valente sova na América com "Alexandre" [fracasso nos EUA] e ainda sou contra a guerra. Acho que foi um erro colossal e neste momento está tudo uma confusão. Temos que arranjar maneira de... [faz uma pausa] temos uma nave espacial a arder e há que engendrar maneiras de apagar o fogo."

Não podia ser mais contraditório, outra vez - afinal, não podia ser mais Stone. Então, perguntamos-lhe, como interpretar o aparecimento de uma personagem em "World Trade Center", um antigo "marine", Dave Karnes (interpretado por Michael Shannon), que, não acatando as ordens dos militares que supervisionavam os trabalhos no Ground Zero, salva os dois heróis da história e, de seguida, sentindo necessidade de vingança, alista-se e vai para o Iraque - verbalizando no final que o 11 de Setembro precisa de ser vingado. Kearns não personificará a reacção da Administração americana, não será uma justificação para o conflito iraquiano? "Naquele fatídico dia, os sentimentos do povo americano, assim como os de muita gente pelo mundo inteiro, foram sentimentos de fúria e vingança. Isso é um facto e temos que lidar com isso. Com a idade que tenho, seria errado tornar-me politicamente correcto e negá-lo. Não o fiz. Apenas isso", responde Stone.

E continua: "Alguns de vós são mais novos do que eu, mas têm presenciado alguns acontecimentos: os ataques da IRA em Londres, as bombas dos bascos rebentar em Espanha, na Itália as Brigadas Vermelhas, na Alemanha o bando Baader-Meinhof... Países europeus empreenderam grandes guerras contra o terrorismo. Mas se nós americanos tivéssemos combatido o terrorismo com acção política podíamos ter tido sucesso - e ainda podemos consegui-lo. Não é necessário pôr os pés no Irão para parar com a guerra ao terrorismo, o que é preciso são os serviços secretos e um confronto sem dó nem piedade. Na verdade, temos que ter homens duros a executar tarefas duras, homens duros como Dave Karnes. Essas pessoas não sofrem crises de consciência quando matam gente cruel." Ao encerrar o assunto lembramo-nos - porque calha a um realizador que já fez grandes filmes com sua confusão e o seu turbilhão... - do "I always contradict myself" que um outro torturado cineasta americano, Nicholas Ray, foi buscar a Walt Whitman para o seu "Bitter Victory" (1957)...

a metafísica da sobrevivência.

"World Trade Center" não parece, de facto, um projecto típico de Oliver Stone. Provavelmente porque o argumento, escrito por Andrea Berloff, chegou acabado às suas mãos. Mas o realizador fala da história, baseada em relatos da vida real dos dois polícias e das suas mulheres, John e Donna McLoughlin e Will e Allison Jimeno, como "uma fatia concreta da vida, tal como "Platoon", uma realidade bem a nível do solo." Desde o momento em que leu o guião jurou que iria ser fiel à história.

"Quando fazemos um filme como este, o que procuramos são pormenores. Vejo os casais John e Donna [Nicolas Cage e Maria Bello] e Will e Allison [Michael Pena e Maggie Gyllenhaal] como pessoas que têm uma vida familiar plena. O que ajudou a mantê-los vivos foi o desejo de regressar para junto das famílias - havia ali uma qualidade metafísica na sobrevivência. Os laços familiares são cruciais, mas não quer dizer que isso seja um cliché. Podemos estar casados há 20 anos e ter quatro filhos, mas não quer dizer que amemos a nossa mulher ou que ela nos ame. De facto, foi essa a zona que abordei, principalmente com o casal John e Donna. A determinada altura um dos filhos diz a Donna: "Preocupas-te verdadeiramente" [com o facto de o marido/pai ter sido dado como desaparecido]? Tomamos o nosso marido como um dado adquirido quando temos quatro filhos porque os miúdos se entrepõem entre o casal. O marido está sempre a trabalhar, levanta-se às três da manhã, ela é dona de casa. O que eu queria perguntar era: "afinal, o que realmente importa?" Era aí que queria chegar naqueles breves momentos entre eles, fazendo com que se aproximassem."

Onde estava Stone quando os aviões foram de encontro às Torres Gémeas? "A minha mulher acordou-me, ligou a televisão e tal como sucedeu com outros americanos, invadiu-nos uma enorme sensação de tristeza. Embora o domingo seguinte tivesse sido emocionalmente o dia mais duro para mim, porque é o dia em que a família se reúne, quando sentimos falta das coisas que tomamos por seguras. Este sentido de emoção foi uma das coisas que tentei transportar para o filme."

Falemos, então, de política. E, já agora, de Al Gore. O que pensa Stone de Gore como futuro candidato a presidente? - ultimamente, Gore tem vindo a gozar de alguma atenção mediática, em parte por causa do seu compromisso em salvar o planeta. "Duvido que venha a acontecer [a candidatura]", responde Stone. "Adorava que Gore fosse presidente, seria a minha primeira escolha. Mas acho que não terá essa oportunidade a menos que se candidate e não se poderá candidatar a menos que consiga o dinheiro necessário, porque na América é preciso ter uma organização rica. E Hillary Clinton tem o dinheiro todo".

Seria assim tão mau se fosse Hillary? "Antes Hillary do que a actual Administração - mesmo que lastime algumas das suas resoluções. Ela tem os mesmos problemas que Mr. Clinton tinha. Mas agora mesmo estamos a passar um mau bocado na América e temos que sair da crise."

Helen Barlow / Vasco Câmara
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