A morte do príncipe

Poucos filmes congregam à sua volta tantas paixões como esta adaptação que o grande Luchino Visconti fez do romance homónimo de Lampedusa sobre as grandezas e misérias do príncipe de Salinas, alter-ego ficcional do romancista, em que o cineasta, ele próprio Visconde de Modrone, e descendente directo da família outrora reinante em Milão, os Sforza, projectava muitas das suas contradições e fantasmas.

No centro, avultava a figura "gigantesca" de Burt Lancaster e, à sua volta, evoluíam alguns dos actores "fétiche" do cineasta: Paolo Stoppa e Rina Morelli, para além de todo o comum passado fílmico, cúmplices de inúmeras aventuras teatrais; Alain Delon, o Rocco do operático filme anterior, "Rocco e os seus Irmãos" (1963), e Claudia Cardinale (também ela vinda de "Rocco"), que seria protagonista do filme imediatamente posterior, "Vaghe Stelle dell"Orsa" (1965), belíssima variação e fuga, com a música de César Franck ao fundo, sobre o tema do incesto.

Para além deste importante "retrato de família" (não esqueçamos que o título original de "Violência e Paixão", o filme-testamento de Visconti, era "Gruppo di Famiglia in un Interno"), "O Leopardo" repegava em tom épico no "Risorgimento", período histórico que Visconti já encenara em tom melodramático de grande ópera verdiana naquela que constituiria, porventura, com a companhia de "O Leopardo" e do "opus" final, "O Intruso", a sua trilogia de obras-primas, "Sentimento" (1954). Por tudo isto, constitui questão de somenos importância discutir a fidelidade do filme ao romance em que se baseia, sabendo que Visconti, interessado em sublinhar, de forma desmedida, o protagonista e a sua dimensão política, optou, por exemplo, por reduzir a personagem quase secundária uma das figuras-chave do final do texto de Lampedusa, Concetta, a filha do "leopardo" do título.

O filme assume-se, pois, como belíssimo fresco histórico e como complexa saga familiar: a história de um homem que reflecte a História de um mundo em transformação, compreendendo, com terrífica lucidez, o seu papel na encenação, de que é protagonista e joguete - "Para que nada mude, é preciso que tudo mude". Pela sua pose aristocrática, pela sua força de salvar uma Sicília "eterna" e eternamente colonizada, passa a essência deste olhar moderno sobre as fragilidades humanas, instrumentalizadas por infinitos jogos de poder.

Muito mais se poderá dizer desta obra inesgotável, que reconstitui, com maníaca precisão, os rituais de vida de uma classe privilegiada, em tempos de crise: a relação dialéctica com a Igreja, epitomizada pelo padre (Romolo Valli, outro "habitué" viscontiano), confessor e cúmplice involuntário das transgressões sexuais do príncipe; a oscilação do sistema de classes, com a ascensão do novo-riquismo de uma burguesia ávida de visibilidade; a construção de um microcosmos perfeito, numa Donnafugata onírica, ruína gloriosa de um passado omnipresente, à qual se chega depois de uma viagem sem tempo, atravessando tempos e espaços imutáveis para desembocar numa igreja que a câmara percorre em impressionante "travelling", traçado sobre os rostos empoeirados da família, ao som do prelúdio de "La Traviatta" de Verdi (a mesma que funcionava enquanto imagem de marca, no concurso do baile popular de "Obsessão", de 1943, o "opus 1" do catálogo viscontiano), tocada em órgão, como se de música sacra se tratasse.

A genialidade do olhar sobre a História e sobre a paisagem - fulcral a sequência metafórica da caçada com Don Ciccio Tumeo (estarrecedora composição de Serge Reggiani), a única personagem que se recusa a cancelar a sua fidelidade ao regime deposto - passa pela adopção de um "timing" particular, que se revê na lentidão com que revisita salas abandonadas do palácio ou se detém em pormenores de trajes ou de recortes arquitectónicos, incorporando, com absoluto rigor, o breviário estético do cineasta: quadros, espelhos, candelabros, rendas de vestidos e, até, um breve (apenas o tempo exacto para que adquira a desejada função) plano "escatológico" sobre o conjunto de penicos, que assinala o fim de festa.

Não existe qualquer cedência a uma espectacularidade imediatista, que poupe o espectador a esta viagem exposta numa máquina do tempo, que inclui ópera e astronomia, desejo sexual e desesperada angústia perante a iminência da morte, a heroicidade do combate corpo a corpo e a "cobardia" de renegar ideais do passado recente para melhor o conservar, num quadro complexo de pulsões e repulsas, recriando a vida em arte ou a arte como imitação de uma vida exemplar.

Epílogo e ponto culminante desta visão conciliadora de uma atitude materialista perante a História e de uma atracção impossível por um decadentismo estético, chegamos à sequência do baile, longa (mais de meia hora) e detalhada, fazendo explodir os equilíbrios instáveis, que se haviam construído: o quase triângulo amoroso, também ele impossível, entre Lancaster, Delon (Tancredi, o homem comprometido do futuro) e Cardinale, animalesca e carnívora personificação do feminino, joga-se no espectáculo, entre o grotesco e o sublime, de uma sobrevivência de classe, para a qual Visconti convocou, enquanto figurante da sua própria história, a aristocracia siciliana. Ao som de polcas e mazurcas, figurando no cerne, suprema sabedoria e sorte, uma valsa inédita de Verdi, opera-se a súmula de todas as contradições: o envelhecimento do protagonista conduz a uma morte elidida do príncipe, sinalizada, primeiro, no quadro da biblioteca, um moribundo rodeado pela família, no leito de morte, e, depois, no início do passeio a pé de Lancaster para "sair de cena", com o plano da chegada do padre para dar a extrema unção a uma desconhecida personagem, golpe de misericórdia nas ilusões há muito perdidas. No baile, os últimos resistentes ensaiam um passo de dança no salão quase vazio.

Delon, que aparecera pela primeira vez, a prenunciar já a substituição, enquadrado no pequeno espelho da barba de Lancaster, "herda" o reino de sombras e inevitáveis quedas, de que apenas restará, como se diz no filme, o orgulho ferido de leopardo da Sicília, paraíso perdido e impossível de letal beleza. Esta beleza de morte, de simulacro infindável de passadas glórias, percorre o filme e a obra fílmica de Visconti com incandescente força. "O Leopardo" está vivo também porque encena a morte como nenhum outro filme.

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