A educação sentimental (ou o corpo é que paga)

Numa conversa com Jacques Audiard por altura da estreia portuguesa do seu anterior filme, "Nos Meus Lábios" (2001), o realizador, falando "como argumentista" (que o foi, antes de realizar filmes; e que continua a ser como realizador de filmes), estabelecia o seu programa: "Temos uma personagem modesta colocada na situação X, o que é que lhe vai acontecer? O ideal é que a personagem não tenha à partida todas as respostas para o seu percurso e que, do ponto de vista do espectador, ele não esteja demasiado avançado ou atrasado em relação ao que se vai produzir. Isso é que é a empatia. O ideal é estar à mesma velocidade da personagem e partilhar o seu turbilhão".

"De Tanto Bater o Meu Coração Parou" é a concretização mais eloquente e mais lírica, nas quatro longas-metragens de Audiard - a sua obra inclui ainda "Regarde les hommes tomber" (1994) e "Um Herói muito Discreto" (1996) -, desse "estar à mesma velocidade da personagem e partilhar o seu turbilhão". É um filme que se perde e se descobre, que opta e que inflecte, à velocidade da impaciência, da desordem ou da inconsciência de Tom/Romain Duris - com a mesma possibilidade de erro e de precipitação dos gestos, com a mesma crença em invenções como a declaração de amor. No fundo, com o mesmo bater de coração, em cada plano e na sucessão dos planos, o filme está "à bout de souffle" como Tom.

Jacques Audiard (nascido em Paris, em 1952, filho de um argumentista e realizador, Michel Audiard, estudante de literatura e filosofia na Sorbonne, argumentista - de vários "policiais" franceses -, assistente de montagem - por exemplo, no "Inquilino", de Polanski - e finalmente realizador) não tem feito outra coisa com os seus filmes: seguir personagens banais, confusas, em desvantagem ou na penumbra de uma vigília existencial, que se depararam colocadas numa situação extraordinária, que se redescobrem poderosas, que despertam, afinal, para um destino às vezes maior do que elas.

"Bigger than life", costuma dizer o realizador francês: uma vez estabelecida a base de um realismo feroz entre personagens e entre personagens e lugares, o filme coloca-se sempre com elas em movimento de fuga. O que aqui se distingue é o realizador, transformado em artesão de luz e de sombras (é assim que ele se vê, é assim que a sua obra o dá a ver), fazer o filme metamorfosear-se com as personagens e com o seu percurso de sangue e de dor (porque aqui o corpo é que paga), vestindo e largando a pele de vários géneros. Mathieu Kassovitz, em "Um Herói Muito Discreto", descobrindo, no fim da II Guerra Mundial, que o pai, afinal, pouco devia ao heroísmo e que a mãe fora colaboracionista, reinventa-se como herói da Resistência (como uma personagem de um romance pícaro, daquelas que atravessam a História e se confundem com a História); Emmanuelle Devos, em "Nos Meus Lábios", transforma as suas desvantagens (a surdez) em mecanismo de poder, e assim um "patinho feio" mostra as plumas de uma "femme-fatale" (como uma personagem de "thriller" de série B americana); Romain Duris, em "De Tanto Bater o Meu Coração Parou", dividido entre o "bas fond" dos pequenos crimes do negócio imobiliário, herança do pai, e a elevação da música de Bach, a sua autonomia existencial, faz a entrada na idade adulta - as mulheres, o confronto com o pai, a morte, o amor e os ensinamentos do fracasso. Como a personagem central de um "flaubertiano" percurso de educação sentimental.

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