Adeus amigos

Não é muito seguro que aquilo que mais se repete acerca de "A Cara que Mereces", inclusive pelo realizador, seja o que há de mais significativo nele. Uma crise existencial de um homem que faz trinta anos: parece uma sinopse de um drama psicológico, tudo o que o filme não é (nem "drama" nem "psicológico").

Vejamos isso como um "gag", porta de entrada, "gancho", de uso só justificável perante a dificuldade em lidar (ou em definir com rigor) com o que acontece em "A Cara que Mereces", filme que se instala num desnível entre a "efabulação" e o "efabulado". Não é metafórico, não é literal: está algures entre os dois, numa terra de ninguém que o filme procura, encontra, e alimenta até ao fim (até, de facto, não sobrar ninguém na terra).

Essa terra é, claro, uma "cosa mentale", narrativamente falando o produto do delírio febril de um protagonista que um feroz ataque de sarampo (entre outras vicissitudes) deixou em estado semi-comatoso. Mas é também uma "cosa cinematografica": um filme projectado na cabeça dum espectador adormecido. É curioso, mas o filme português que "A Cara que Mereces" mais faz lembrar é a "Branca de Neve" de João César Monteiro: um filme que suspende todos os vínculos "automáticos" ao real, que conduz o espectador (com suavidade, aliás) para um modelo de realidade e para um registo de representação (para um "mundo") com regras criadas (e definidas com precisão) pelo próprio filme. O espectador, como diria Straub, é "livre" de aceitar ou não, mas uma vez lá dentro não tem retorno: o "mundo" desbobina-se em fluidez e fidelidade às suas premissas, e nunca volta para trás. Se isto é um filme sobre um homem que vê "filmes", é relativamente natural que aja segundo uma mecânica de "protótipo" da relação entre um espectador (qualquer um) e um filme (qualquer um).

Desejo de histórias.

Dissemos que o filme conduz o espectador com suavidade. Expliquemos, porque essa sequência, a da "transição", é o momento decisivo do filme. E é, seguramente, o momento decisivo na definição da relação que o espectador vai manter com ele: aí se decide se vai com ele ou se bate os pés e dá meia volta. O filme começa, em ambiente carnavalesco justificado pela narrativa (uma festa numa escola), com miúdos e graúdos disfarçados das mais diversas coisas. A atmosfera ainda é, no entanto, "real". Começa-se a desenvolver uma tragicomédia da regressão, com uma personagem (a de José Airosa) enfastiada, mal disposto com a perspectiva de fazer 30 anos, com problemas de relacionamento com os outros, de amuo fácil e capaz de ter sentimentos mesmo com as crianças que andam por ali à volta. Como uma fantasia musical à la Demy, de vez em quando entra música e as personagens cantam, em diálogo ou em monólogo. Há "gags", é fácil rir.


Depois a coisa sobrecarrega-se, o protagonista fica cada vez mais doente, mais zangado. Refugia-se numa casa de campo, longe da cidade, e adormece, cheio de febre. É a partir desse momento que o espectador fica com a cara que merece, o que vem a seguir equivale ao "trigésimo aniversário" de quem está a ver o filme (isto é uma piada). A música começa a soar como se se preparasse uma sessão de hipnotismo, como um gongo em cadência certa. Alguma coisa se passa, entre um adormecimento e um despertar - o protagonista transformou-se em Bela Adormecida, e sete personagens (como na Branca de Neve, justamente), sete criaturas tão palpáveis como as criaturas oníricas, tomam conta do espaço. Doravante o filme será deles, sempre em nome do adormecido. Têm características distintivas, como personagens de conto infantil, e estão submetidos a regras, incessantemente enunciadas - é o bastante para fazer um "mundo". A sequência da transição leva tempo, permite que o espectador "transite" sem brusquidão (mais cruel, Hitchcock matou a protagonista de "Psico" duma penada, durante um duche). Por outro lado, um despertar pode ser demorado, e ainda mais se se trata da habituação a um mundo redesenhado por uma nova luz: chamem-lhe exagero ou disparate, mas esta sequência tem o ritmo e a duração da longa cena de pugilato entre os protagonistas do "They Live" de John Carpenter, onde se tratava de convencer alguém a pôr uns óculos e a olhar para as coisas de uma maneira diferente.

Apesar das premissas "fabulosas", e apesar da associação das personagens a um comportamento infantil, nada faz rir: é uma história de adultos, com traições, lealdades, desencantos, viagem duma harmonia comunitária e familiar à solidão magoada da maturidade. "Adeus, amigos", já não nos divertimos aqui. Não há nada de regressivo nisto, nem nas conclusões.

Mas em toda esta segunda parte - é o que tem de mais notável - pontifica um permanente desejo, como um desejo de cinema e de histórias. "Histórias...", desabafa uma personagem, antes de um dos mais bonitos planos do filme (um lago e barquinhos de papel coloridos). Estamos na terra do cinema, onde a coisa mais sensual do filme pode ser a maneira como dois planos se colam um ao outro, onde uma palavra pode ter o poder de lançar uma história e - contra todas as expectativas - encontrar as imagens correspondentes (a uma história de piratas, por exemplo). Entre a metáfora e a literalidade, "A Cara que Mereces" (é o seu único lado jubilatório) deixa-nos com a única palpabilidade possível: a do cinema, simultaneamente ilusão e palpabilidade. E um pouco de aventura, com os diabos.

Sugerir correcção
Comentar