Teremos sempre Tóquio

É no alto que eles se encontram, com a cidade a piscar em fundo. Tóquio: metrópole electrificada, arranha-céus, o céu não é o limite. Tóquio e não Nova Iorque, apesar de eventuais semelhanças: mesmo sendo um espaço que fez a sua americanização a galope, um americano sente-se, em Tóquio, "lost in translation".

"É muito diferente ser americano em Tóquio, onde não se consegue ler os sinais nem comunicar. Não é igual a nada que se tenha experimentado antes", explicava-nos Sofia Coppola em Setembro, durante o Festival de Cinema de Veneza, onde apresentou "Lost in Translation - O Amor É Um Lugar Estranho".

Se o anterior "As Virgens Suicidas" (1999) foi um dos mais belos primeiros filmes do cinema americano dos últimos anos, "Lost in Translation" é o mais belo segundo filme do cinema americano dos últimos anos. Indiscretamente belo.

Confirmem à vontade: que não estavam enganados, que Sofia Coppola é menina de talento e senhora de um universo singular, que agora ninguém a tira do vosso panteão íntimo de cineastas. Que já cá canta.

bob meets girl.

É no alto que eles se encontram, no topo de um hotel de luxo de Tóquio. Ele é Bob Harris (soberbo Bill Murray), um actor um pouco "has been", de passagem pelo Japão para rodar um (lucrativo) anúncio publicitário a uma marca de whisky. Ela é Charlotte (Scarlett Johansson), uma recém-licenciada em Filosofia recém-casada com um fotógrafo "hip" (Giovanni Ribisi, o narrador de "As Virgens Suicidas") que a deixa entregue a si própria pouco depois de se instalarem no Park Hyatt Hotel.

(O Park Hyatt Hotel existe mesmo: é onde Sofia Coppola fica instalada sempre que vai a Tóquio. O facto de ser cliente habitual ajudou a que a deixassem filmar naquele local. Diz Bill Murray: "A recepção é no 50º andar. Sai-se do elevador, ainda nem se tem um quarto e já estamos a 150 metros de altura. É assustador. E bizarro. Sentimo-nos como se estivéssemos numa estação espacial.")

Bob e Charlotte são dois americanos à deriva num aquário, a cidade a entrar-lhes sempre pelo hotel adentro, na vista panorâmica do bar ou na janela de um quarto nas alturas. A dois, é mais fácil fintar a solidão: Bob "meets girl", hão-de atrever-se juntos pela cidade, de noite, e trocar refrões pop via karaoke.

Depois de ter adaptado o romance de Jeffrey Eugenides em "As Virgens Suicidas", Sofia Coppola quis tentar, conta-nos, escrever um argumento original - fica a ideia de alguém que sente ter provas a dar, ainda, certamente o resíduo de um historial de actos falhados: a substituição "non grata" de Winona Ryder em "O Padrinho III", designer de moda, fotógrafa... Ninguém lhe pergunta pelo pai, Francis Ford, talvez por pudor, talvez por se reconhecer que este não é um caso ensombrado pela paternidade. Sofia dirá, mais tarde, à revista "Les Inrockuptibles": "Certas pessoas esperariam, e até gostariam, que os meus filmes fossem nulos, só porque sou 'a filha de'. É um prazer, para mim, provar-lhes o contrário." Para nós, também.

O guião de "Lost in Translation" não foi além das 75 páginas, com ocasionais descrições de cenas reduzidas a qualquer coisa como "Charlotte anda por Quioto sozinha". Pode-se imaginar algumas prioridades: atenção ao detalhe, lugar à improvisação (sobretudo, no que toca a Bill Murray), mais modulação que acção, mais "mood", tonalidade, que "plot", enredo.

Pode-se imaginar, também, os filmes que Sofia andou a ver: "Breve Encontro", de David Lean, talvez "Casablanca", seguramente "The Big Sleep", de Hawks, porque ela o assumiu - queria ver, através de Bogart-Bacall, como é que se pode condensar a evolução de um par. O de "Lost in Translation" também é formado por uma "young girl", ou uma "old girl" num corpo mais novo (como Bacall), e um homem maduro (como Bogart). Um par é a coisa mais previsível que há. Ou não: Coppola pôs toda a gente a especular sobre a relação de Bob e Charlotte. Como em "In the Mood For Love", de Wong Kar-wai, tem-se a impressão de que nem tudo nos é dado a ver. Como em "In the Mood For Love", há algo a ser sussurrado: que é que ele lhe diz, a ela? Deixem que uma canção pop decida: "Just like honey", dos Jesus & Mary Chain.

made in Japan.

O "site" japander.com fornece uma antologia de casos como o de Bob Harris - mas reais. Um "japander", lê-se aí, é "uma estrela ocidental que se serve da fama para ganhar avultadas somas de dinheiro em pouco tempo publicitando produtos no Japão que provavelmente nunca usaria". Exemplos: Harrison Ford, Kevin Costner, Brad Pitt, George Clooney. "É estranho estar em Tóquio e ver o Ewan McGregor a segurar um frasco de café ou o que quer que seja", diz Coppola. "Não há nada que se lhe possa comparar no Ocidente." Esta ideia de um lugar único há-de repetir-se ("It's not like any place else", afirma Bob Harris, isto é, Bill Murray "himself"), e, de resto, "Lost in Translation" faz do Japão um terreno de experimentação da diferença irredutível. É mesmo o que está na génese de grande parte dos "gags" - faltava dizer: "Lost in Translation" é uma comédia. Numa hilariante cena, o realizador de publicidade dá demoradas instruções em japonês que a intérprete traduz com extrema economia. Nada a fazer: Harris não pode deixar de sentir que algo ficou "lost in translation".

"Também queria trabalhar com o Bill Murray porque ele é alto", dirá Coppola. Visto da perspectiva de Bob Harris, o Japão é um país de pessoas de baixa estatura que trocam os "r" por "l". Reconhecem-se os "clichés" - que levaram muito boa gente a ver neles, apressadamente, alguns sentimentos antijaponeses - mas não é por veleidade que Coppola põe Murray a olhar dessa forma: tal como as irmãs Lisbon, de "As Virgens Suicidas", eram espectros reactivados pela memória dos que as conheceram, em "Lost in Translation" o espaço exterior é um campo de ressonâncias do estado emocional das personagens. Assim, o Japão que se vê do lado de Charlotte, uma rapariga ainda em fase de auto-descoberta, é um lugar que exerce o seu fascínio, um Japão mais tradicional que ela perscruta com curiosidade - e, porventura, mais reconhecível. Um "cliché" que muito boa gente não viu: que Bob Harris, como representante da dominante cultura americana, tende a converter tudo nessa lógica - exemplar a cena no hospital, em que uma mulher lhe dirige umas palavras em japonês e ele assume, por aproximações sonoras, que ela está a tentar falar inglês.

jet lag.

Hipótese: "Lost in Translation" é um filme sobre o "jet lag". Quer dizer, onde se projecta o síndroma dos aeroportos, a alienação do viajante. Como um aeroporto, o Park Hyatt Hotel é um lugar de transição. Chegadas, partidas. Fusos horários, faxes a chegarem às quatro da manhã. Bob Harris surge como um "zombie" insomne e desterritorializado. Não que tenha saudades de casa. Um lar pode ser tão estranho quanto o Japão, como demonstra uma caixa enviada a Bob pela mulher com amostras de carpetes. E, bem vistas as coisas, o mais estranho que podemos encontrar num país que nos escapa somos nós próprios: é o que Bob parece constatar quando vê a sua imagem - o tal anúncio a um whisky - nas ruas ou, vinda do passado, na televisão, a falar japonês (que é mesmo Bill Murray, numa emissão antiga do programa Saturday Night Live)...

Os filmes de Sofia Coppola não nos ficam apenas na retina (um "travelling" sobre árvores tingidas de sol), pegam-se à nossa memória, contagiosos, eles próprios de memórias feitas. Como em "As Virgens Suicidas", "Lost in Translation" parece estar envolvido numa atmosfera etérea, como se tudo decorresse um plano ligeiramente acima da terra - contributo, também, de uma banda sonora dominada por uma electropop lunar, dos Air a Kevin Shields (My Bloody Valentine). Como "As Virgens Suicidas", é um filme percorrido por um sentimento de perda, como se estivéssemos a assistir a algo que aconteceu antes, o suspiro de um romance. Faltava dizer: é um filme melancólico. Coppola confirma: "Queria que se parecesse com uma memória e não algo que estivesse a acontecer." Mesmo sendo uma comédia romântica, ou antes, platónica, o tom é depressivo (ao passo que "As Virgens Suicidas" era um filme doentio, infeccioso, com um visual colorido).

"Suponho que gosto desses momentos que se podem apreciar enquanto os vivemos mesmo sabendo que não vão durar. Porque a sua memória fica connosco." Pode muito bem estar a tornar-se o objecto de estudo de Sofia Coppola: epifanias silenciosas que nos podem perseguir uma vida inteira. "Lost in Translation", um dos primeiros grandes filmes de 2004, há-de perseguir-nos.

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