O velho Xavier é novo

Nunca saberemos porque é que a mãe de Xavier o deixa num orfanato nem o que lhe acontece entre esse momento e o seu regresso, já adulto, da tropa. Entre um e outro há o silvo de um comboio como num "western" e é essa elipse algo brusca e inesperadamente premonitória que inaugura "Xavier", novo-velho filme de Manuel Mozos, o primeiro e o último.

É também uma elipse que separa a rodagem e a estreia daquela que deveria ser (e é) a primeira longa-metragem de Mozos, com 12 anos de desaires, adiamentos, frustrações e quase-desistências pelo meio. Entretanto, o realizador fez a sua segunda longa, "Quando Troveja" (1999), que em termos de visibilidade até foi a primeira, ganhou calos e tornou-se (um pouco mais) adulto.

Como num "western", é preciso um "flashback": as filmagens foram feitas em 1991 e interrompidas no último dia quando a falência do co-produtor francês foi dada como irremediável e se "estava a contar com dinheiro que acabou por nunca chegar", explica Mozos, de 44 anos. Faltava rodar o que corresponderia a cerca de cinco minutos do filme e "Xavier" ficava sem final e com uma produção de dívidas acumuladas à espera de melhores dias.

"Houve períodos em que isso esteve quase a resolver-se, outros em que eu próprio estive quase a desistir. Durante alguns anos ainda se pensou refilmar o que faltava mas como, entretanto, passou tanto tempo, percebemos que era impossível porque os actores já estavam bastante diferentes."

Carregar um filme invisível durante tantos anos marca. Mozos sabia que iria concluí-lo "mesmo que demorasse toda a vida". "Um filme que não se termina é uma coisa complicada, sobretudo para mim, mas também porque dentro do meio [do cinema] fica sempre uma espécie de nódoa ou de carimbo." Terminar, no caso de "Xavier", significou reabrir os caixotes com as folhas de anotação, rebobinar a primeira cópia de montagem com quadros negros no lugar das cenas não filmadas e contar com as elipses a favor para reconstruir um filme. Remontar as peças separadas. "Apesar de, para mim, ser uma coisa contraditória em termos de sentimentos, havia esse lado francamente positivo de quase estar a fazer um novo filme, apesar de ser um material que já existia", diz Mozos. "Nesse sentido, foi muito agradável tentar descobrir como é que o filme podia existir..."

No fundo, é o que tem feito na área do documentário, com "Lisboa no Cinema" (94), "Cinema Português" (96) e "Censura: Alguns Cortes" - essencialmente, trabalhos de montagem a partir de excertos de outros filmes. É o destino. A ironia é que Mozos começou a fazer documentários, encomendas, porque era única forma de ficar no cinema quando o (sistema do) cinema lhe voltava as costas. "Há uma arqueologia. O 'Xavier' acabou por ser um bocado assim", ironiza "Às tantas, olhando para aquilo que tenho feito, não tenho problemas nenhuns com isso mas há pessoas que dizem: 'Isso é um trabalho um bocado necrófilo ou vampiresco'. E acaba por ser, mas eu também não tive grandes possibilidades de fazer projectos originais."

órfãos.

"Xavier", enfim. "Havia uma frase que eu gostava muito mas que saltou, o tipo da loja, o Pires [José Pedro Gomes] dizia-lhe: 'Eh pá, não leves a vida tão a sério!'". Ouve-se o tal silvo do comboio, há um "raccord" a fazer o salto no tempo, e vê-se Xavier (Pedro Hestnes) a regressar à cidadezinha (é Lisboa e é uma cidadezinha), como - desculpem a insistência - o "cowboy" solitário de um "western". O que segue é um percurso iniciático sobre a passagem da adolescência e a entrada na vida adulta, coisa que a filmografia acidentada de Mozos não impedirá de ver como um tema obsessivo.

Para que fique claro: Xavier é um tipo a tentar ser adulto ("Eh pá, não leves a vida tão a sério!")disposto a deixar que todo o peso do mundo lhe assente nos ombros ("Eh pá, não leves a vida tão a sério!")

como se se tratasse de uma expiação.

Sem pai, com mãe internada no manicómio (Isabel Ruth, com a carga de uma personagem muda), um padrinho que entretanto o adoptou (Canto e Castro) e amigos a fazer fintas à vidinha - isto está duro, isto está duro, que é do futuro, como na canção de Sérgio Godinho -, Xavier está decidido a fazer o que esperam dele: arranjar emprego, responsabilizar-se pela mãe, pagar ao tribunal o preço de uma juventude inquieta. Estão todos a tentar manter-se à superfície: o Hipólito (excelente José Meireles) que é vigarista, e a Rosa (Cristina Carvalhal) que é doente, e a Luísa (Sandra Faleiro), lembras-te da Luísa, e o Quim (David Cotter) que é órfão. São todos órfãos neste filme onde não há mães (a que existe enlouqueceu), a começar por Xavier, apesar de não lhe faltar uma figura paterna - o padrinho Alves - e materna - a irmã Luz (luminosa Isabel de Castro). Xavier é um nómada, mas nunca sai do mesmo lugar: está tão só no princípio como no fim. É um "loner", o tipo de protagonista que reencontramos em "Quando Troveja" ou no telefilme feito para a RTP, "Um Passo, Outro Passo e Depois..." (1989), que definem a sua exclusão - não necessariamente voluntária - em relação aos outros.

"Tenho um fascínio por solitários, dos 'westerns', o tipo que fica com o cavalo", ri-se Mozos. "[Os protagonistas dos seus três filmes] são perdedores à partida. Assumem-se como tal, mais ou menos conscientemente. É um bocado como o Rick [Humphrey Bogart] do 'Casablanca', um tipo que sabe que a Bergman não vai ficar com ele... Uma espécie de perdedor nato, mas que o é quase por uma questão de orgulho e honra. A ideia é que, apesar de serem assim, podem ter um momento de redenção. Um dia podem perceber que não vale a pena esse autismo que eles próprios criaram."

"Xavier" ficou sem o final que explicitaria essa redenção, faltou filmá-lo. Sobrou só Xavier a regressar a Lisboa, como no princípio - e, à volta dele, gravitam personagens que perpetuam o mesmo movimento. Não há saída. "Isso é uma ideia que tenho sobre Portugal. Pode-se sonhar muito mas fica-se limitado. 'Lá fora é que é bom.' Mas depois ninguém se mexe muito", afirma o realizador.

"Xavier", um filme sobre Portugal? Tal como "Verdes Anos", de Paulo Rocha - que o filme homenageia - condensava uma dimensão simbólica em relação ao Portugal dos anos 60, em "Xavier" há como que uma inventariação de uma realidade colectiva: o salazarismo (na personagem de Alves), os cafés, o fado, as gaitas dos amoladores, a discoteca africana, as memórias da guerra colonial, o espaço do bairro...

Por falar em "Verdes Anos": no filme de Mozos, cidade e campo prolongam-se, confundem-se. Sendo também um filme sobre Lisboa - é o realizador que fala de fazer da cidade uma personagem -, é-o no sentido de "Verdes Anos". "Eu ainda conheci a cidade como nos 'Verdes Anos'. Vivi na zona do Lumiar, onde morava uma tia-avó, em que não havia nada daqueles prédios, eram vivendas apalaçadas e quintas de grandes extensões." Numa das citações "descaradas" - o termo é dele - ao filme de Rocha, em que Xavier e Rosa passeiam pelos limites da cidade, vêem-se ruínas de fábricas no meio do campo, como promessas de progresso que não foram cumpridas. Nesse sentido, "Xavier" é o pós-"Verdes Anos". "Lisboa é como se fosse um bairro grande. Esse lado de círculo vicioso, não só das personagens mas dos espaços, isso para mim é natural. Mas muita gente pode achar estranho: porque é que mal ele vira uma esquina encontra logo alguém, estão sempre a cruzar-se? Se calhar, nos filmes tento deliberadamente exagerar isso, esse lado de cidade provinciana, que ainda sinto. Embora pareça tudo muito moderno... Não é que não haja evolução, mas acho que o espírito à Leitão de Barros, 'pobrete e alegrete', é um bocado o espírito dos portugueses. Ainda não saímos da aldeia."

grandes esperanças.

Coincidência ou destino, foi Paulo Rocha quem acabou por assumir a produção de "Xavier", o que permitiu concluir o filme. E "Verdes Anos" tornou-se emblemático para uma série de jovens cineastas que estavam a começar ao mesmo tempo que Mozos. O tempo tem destas coisas: se tivesse estreado à altura, "Xavier" teria sido colocado ao lado de outras primeiras obras dos anos 90, com as quais partilha temas e obsessões - a orfandade ("seríamos nós próprios a querer ficar órfãos", pergunta Mozos, referindo-se a uma ruptura com o Cinema Novo), a passagem da infância -, como "O Sangue", de Pedro Costa, "A Idade Maior", de Teresa Villaverde, ou "Nuvem", de Ana Luísa Guimarães.

"Se virmos os filmes dessa época em conjunto, realmente há muita coisa que os liga, mas o que é curioso é que não éramos nenhum grupo como a geração de 60, não tínhamos um programa. Foi espontâneo, quase uma coisa misteriosa." Retrospectivamente, "Xavier" é quase um filme visionário, em relação ao qual haverá a tentação de reconhecer-lhe o retrato de uma geração de realizadores sobre a qual foram postas grandes esperanças mas onde alguns ficaram pelo caminho. "Acreditávamos que podíamos fazer filmes e que as coisas iriam mudar. Acho que fracassámos. Mas nesse fracasso há coisas muito positivas, como o trabalho de Pedro Costa e não só."

"Xavier" é um filme que vem depois de outros filmes, mesmo que tenha coincidido com eles ou antecipado, como "António, Um Rapaz de Lisboa", de Silva Melo (2002), com o qual poderia formar um díptico. Silva Melo, aliás, é co-argumentista de "Xavier", juntamente com Mozos e Manuela Viegas. Mozos foi assistente de encenação da peça "António, um Rapaz de Lisboa", quando estreou em 1995. "Quando se trabalha com outros há uma espécie de contágio", reconhece o realizador. Seja como for, se "Xavier" tem sido até aqui um caso único, permanecerá intocado na sua raridade, (re)afirmando um universo pessoal e cumprindo por inteiro a sua ambição de fresco colectivo. É uma das melhores primeiras obras dos anos 90 - e, já que se estreia agora, uma das melhores primeiras obras deste princípio de década.

("Eh pá, não leves a vida tão a sério!")

Falta dizer que é um filme belíssimo.

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