Morrer e Crescer em Los Angeles

Foram os filmes de "yakuza" que transformaram Takeshi Kitano em cineasta de culto. Foram as suas obras-primas. Agora, com "Irmão", regressou ao género, mas expondo-se ao contacto, e ao contágio, com o exterior: a América. Um gesto suicidário para poder crescer.

Não é difícil sentir que a recepção à obra de Takeshi Kitano talvez esteja em período de recessão. A euforia com que foi recebido o melodrama "Fogo-de-Artifício" (1997) e que se contaminou ao "filme infantil" "O Verão de Kikujiro" (1999), deu lugar à indiferença em relação a "Irmão"/ "Brother", que marca o regresso do cineasta ao universo dos "yakuza".

É que deve ser complicado - para o realizador/actor e para o público dos seus filmes - ultrapassar a memória de títulos como "Boiling Point" (1990) ou "Sonatine" (1993). Ele, por um lado, está farto de responder a perguntas sobre a violência nos filmes (como polidamente resumiu, na entrevista que publicamos nestas páginas, está fascinado pelo fascínio dos espectadores pela violência, declaração que tem o efeito que as elipses têm nos seus filmes: não damos por isso, mas é uma bofetada...); os espectadores, por outro lado, sentirão, e com razão, que no género "filme de yakuza" aquele que é hoje o cineasta japonês mais famoso do mundo já fez as suas obras-primas (os filmes citados).

O que é que pode acrescentar à sua obra "Irmão"/ "Brother", produção que o japonês foi rodar à América, e que tem sido recebida de forma displicente, como se fosse "mais do mesmo", e que até começa como outros filmes do realizador, com o "yakuza" imobilizado, de olhos velados pelos óculos escuros, e com um silêncio que tem a, habitual, força de uma rajada de balas?

Desenraizamento. Sendo uma produção "internacional" - Jeremy Thomas, "habitué" das digressões exóticas de Bernardo Bertolucci - e tendo sido filmado em Los Angeles, é totalmente um filme assinado por Takeshi Kitano. Não há que recear a "internacionalização" ou a "americanização". Esta é mesmo uma obra sobre a tentativa de superação da ausência de um espaço familiar, que se domina.

É a história de um "yakuza", Yamamoto/Kitano, que parte para Los Angeles, onde vive um meio-irmão, após uma luta de "gangs" em Tóquio que correu mal e que o deixou caído em desgraça. Em Los Angeles, que Kitano filma como se fosse Tóquio - ele gostaria que fosse Tóquio (a sua personagem diz, às tantas, que escolheu uma determinada zona para viver porque lhe lembra a cidade onde nasceu) -, assistimos à tentativa de marcação de um ritmo pessoal num espaço estranho.

Mas não é o Japão, nem é Tóquio, e é nessa dificuldade de delimitar um espaço como seu que "Irmão" encontra a sua especificidade. É essa a sua originalidade (uma permanente sensação de desenraizamento que descentra o filme, fazendo-o resvalar para a abstracção) e, também, a sua consciente fragilidade.

"Irmão" é o filme com que Takeshi Kitano expõe o seu universo hermeticamente fechado ao mundo. A sua obra, fascinada pela violência e pela morte, tem vivido sempre num casulo protector, conseguindo manter uma ligação com a infância, de tal forma que a morte (por exemplo, a água em "A Scene at the Sea", de 1991) é tão só o reencontro com uma "cena original".

Aqui, essa pureza já não é possível. Como já não são possíveis os "jogos de praia" (compare-se a luz da breve sequência junto ao mar de "Irmão" com a sequência "igual" que estava em "Sonatina" - é uma evocação distante, já não pode ser a mesma coisa, já não pode ser o intervalo de perfeição).

Podia ser um filme percorrido pela nostalgia, como se estivesse a olhar para o passado (até para alguns filmes do passado), para o que se perdeu, como se cada plano estivesse carregado com a consciência de que já nada é possível para este "yakuza" que quer recriar outra hipótese de irmandade entre as minorias étnicas de LA, mas já não há segunda vez para o samurai. Seria assim, nostálgico, se, para além da desconfortante abstracção (o "no man's land" de Los Angeles, espaço em branco, a pedir para ser preenchido...), não fosse também um filme percorrido por uma onda de esfriamento.

Comparando (e, claro, relativizando a comparação) pense-se na progressão de "O Padrinho I" e "O Padrinho II", de Coppola, o segundo mais solitariamente trágico e sombrio devido ao "esfriar" das relações da "família mafiosa" com a entrada em cena da "lógica industrial". Kitano, quando o filme foi apresentado no Festival de Veneza, falou desse fenómeno relativamente ao Japão: hoje os "yakuza" "já colocam as suas insígnias nas portas, entraram nas agendas da grande sociedade, da Nova Economia". É assim que a violência de "Irmão" se aproxima, com propositado cinismo, do macabro, numa espécie de carnavalesca celebração para deixar só riscos, flores de sangue, nas paredes.

Vírus. Abstracção, esfriamento... Mas a abertura às "impurezas" do exterior trouxe ainda actores ocidentais, americanos, para o interior do cinema do realizador japonês. Aí, "Irmão" dá-se a ver como experiência em curso. O corpo de um actor ocidental, que tem uma disciplina de representação diferente da dos actores japoneses, e sobretudo da muito peculiar presença do "clown" "Beat" Takeshi, é uma estranheza que vai sendo incorporada. Há sempre uma imensa curiosidade pelo processo, pelos efeitos desconfortáveis desse "vírus". A ligação entre a personagem de Yamamoto e a do seu "irmão" negro, americano (Omar Epps), é feita à base de um despique, misto de reverência e de desafio, como se cada um observasse a forma como o outro habita os silêncios e se mexe.

Depois das obras-primas, dos filmes encerrados numa redoma de perfeição, Takeshi Kitano atravessa uma - necessária - crise de crescimento. É sempre uma fase problemática, e "Irmão" é um filme que assume as cores sombrias desse desconforto. É que Takeshi Kitano transforma a crise numa experiência cinematográfica de contágio. Isso é suicidário, porque é um duelo na corda bamba com o fracasso. Mas, afinal, sempre foi esse lado temerário que impôs o japonês como um dos mais originais cineastas da actualidade.

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