Requiem para Um Casal Virgem

Uma história de obsessão construída como um "thriller". Dois vultos na paisagem inclassificável do desejo. "A Cativa", de Chantal Akerman, adaptação originalíssima de Marcel Proust.

No início vemos o cinema. Vemos imagens em Super 8, de um filme amador, e vemos o espectador que está a ver esse filme. Ele está refém, impotente, das imagens; passivo, como todo o cinéfilo que se preze. Ele é Simon (Stanislas Merhar), e projecta um filme de férias, aparentemente obcecado por um grupo de mulheres que se banha numa praia. Um grupo indistinto, sereno nessa sua indistinção, fervorosamente determinado a não abdicar dessa cumplicidade. Qual delas, afinal, é "ela"?

O ecrã parece individualizar, a câmara parece parar sobre Ariane (Sylvie Testud). Vai ser esse sempre o movimento do olhar de Simon ao longo de "A Cativa": isolar Ariane da cumplicidade feminina, ficar com ela só para si, penetrar o mundo e a imaginação dela, possuí-la, possuí-los. É o movimento incessante ao longo do filme, e é infrutífero. Como nas primeiras imagens de "A Cativa", Simon será sempre espectador até ao fim, estará sempre do lado de cá, com o seu desejo.

Diz-se, em "A Cativa", de Chantal Akerman, que Ariane é uma mulher que gosta de mulheres, e por isso escapa à teia de Simon. Mas esse é apenas um pormenor nas ressonâncias da angústia dele: "É possível que, ao fazer amor, uma mulher possa esquecer que está com um homem?". Traduzindo, e pondo de lado o acessório para ficar com o essencial: alguém é sempre, e irremediavelmente, outro; ficamos sempre sozinhos com o desejo.

Ariane fecha os olhos durante o sexo. Como se quisesse esquecer, e imaginar. "Quando fechamos os olhos pensamos em quem seremos, somos livres, pensamos no que queremos, esquecemos com quem estamos, deixamo-nos ir. E quando abrimos os olhos, acabou-se". É esse também o momento, quando ela dorme vestida, que Simon, vestido, escolhe para a (não) possuir. Porque nesse momento ele também está só, com a imaginação.

Obsessão. "A Cativa" é uma história de obsessão, uma vertigem sonâmbula que evolui como um "thriller" fatal. Chantal Akerman viu "Vertigo" e concorda que em Simon/Ariane se ouvem os ecos de James Stewart e Kim Novak do filme de Alfred Hitchcock.

"A Cativa" é, ainda, uma adaptação de Marcel Proust - "La Prisonnière", um dos pilares do edifício "Em Busca do Tempo Perdido" (Albertine deu em Ariane; Marcel em Simon). Mas dizer que é uma "adaptação" é reduzir em muito aquilo que se passa no magnífico filme de Chantal Akerman: não "adapta" nada, porque quer fazer da infidelidade uma forma de ser fielmente "proustiano". Ou seja, originalíssimo: nem filme de época, nem filme "actual", é "um filme contemporâneo de época". Apesar dos carros em Paris, "imagina-se" o guarda-roupa. O território de "A Cativa" é, assim, um labirinto hermeticamente selado, onde tudo, do espaço ao sexo, é trabalho do imaginário; onde se progride através de variações e abstracções, rendilhados, movimentos incessantes, monomaníacos, por recantos vários antes de regressar ao mesmo: a solidão de cada um com o desejo.

Há Paris e há carros em movimento em "A Cativa", como havia carros em movimento em São Francisco no "Vertigo" de Hitchcock. Hoje, no cinema, já ninguém tem tempo para filmar essas cenas. Já se reparou que há muito desapareceram dos ecrãs as deambulações de automóvel por uma cidade? Que num plano se entra num carro para, quanto muito, se sair dele no plano seguinte?

Ora, "A Cativa" recupera o que se perdeu nesse intervalo; recupera essa experiência decisiva (em termos figurativos e narrativos) do filme, romântico e não só, sobre o "par". E dedica-lhe uma sucessão de alguns dos mais belos planos do cinema contemporâneo. Com eles, desliza para um tempo, literalmente, perdido, em que Simon (com os fatos que parecem sufocar a sua "masculinidade") e Ariane (com os sapatos gritantemente altos, uma espécie de cacofonia do "feminino") são aproximações, e correspondentes desfoques, às abstracções de "homem" e "mulher", masculino e feminino - afinal, categorias em perda, figuras em branco a serem, também, preenchidas pela imaginação, como vultos vistos através de um espelho translúcido, e a precisarem de nova formulação.

Fantasmagoria. Tem-se falado de "Vertigo". Há quem evoque, também, Bresson. E houve quem se lembrasse de "A Carta", de Manoel de Oliveira (aliás, um dos mais "bressonianos" do cineasta português) por causa desta síntese - chamemos-lhe assim - resultante do choque entre mundos e épocas diferentes. Talvez seja mais apropriado falar de um certo cinema dos anos 70 que Chantal Akerman recupera aqui, numa deslocação, anacronismo, propositada que serve a fantasmagoria de "A Cativa" e o vampirismo das suas personagens.

Como a sequência, que antecede o desenlace, no hotel da praia, em que o décor aparece como uma recomposição a partir de fragmentos do cenário de um filme perdido (ou como o apartamento parisiense de Simon, em obras, nunca se percebendo se a ser destruído ou a ser construído), Chantal Akerman trabalha com os restos de um cinema que não teve outra hipótese se não celebrar os seus próprios rituais fúnebres - há momentos, por exemplo, toda a parte final, no mar, em que as sequências são invadidas pelo tempo e pelas vagas crepusculares do cinema de Luchino Visconti.

Em 1996, a cineasta belga instalou-se no centro da comédia romântica, em "Um Divã em Nova Iorque", para trabalhar os seus desvios. Os resultados foram bastante frustrantes. Agora, com "A Cativa", é que é: um filme moderno sobre o par, um filme sobre esta sensação tão contemporânea de fim, mas com um vibrante pressentimento de algo de novo que se abre ou que já se abriu. Mas que ainda não se consegue nomear.

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