A Babilónia Vai ao Campo

Em "State and Main", David Mamet experimenta o campo da comédia pura. Filiado nas raízes clássicas do género, o realizador leva Hollywood até à América profunda numa paródia calorosa sobre a "segunda oportunidade".

A irrisão do real, a sua desmontagem ou multiplicação numa série de encenações e representações, foi desde o primeiro filme de David Mamet ("Jogo Fatal", de finais da década de 80) um dos temas mais caros ao cineasta. Preocupação temática, com evidentes implicações a nível formal, que, contudo, talvez Mamet nunca tenha transportado claramente para o campo da comédia pura, o território cinematográfico porventura mais talhado (inclusive em termos históricos) para a sua plena exploração. "State and Main" traz, por isso, qualquer coisa de novo ao cinema de Mamet: é uma comédia, perfeitamente inscrita em termos de género, auto-consciente quanto baste sem se transformar, por isso, numa leitura pós-moderna dos seus códigos e convenções. É claro que essa hipótese de leitura também não é excluída, mas (ao contrário do que acontece no exangue "Betty", de Neil Labute) as coisas passam-se a um nível bastante mais "concreto", directamente filiado nas raízes clássicas do género: questão de ponto de vista, Mamet filma de dentro, calorosamente, mesmo que o seu olhar não seja necessariamente empático. Com isso, abandona também aquela rigidez esquemática que é outra característica do seu cinema, e que tantas vezes deixa os seus filmes naquela difusa fronteira com o mero exercício narrativo, tão laborioso quanto potencialmente estéril.

Raízes clássicas, disse-se, e são plenamente assumidas por David Mamet. Mamet falou, a propósito de "State and Main", em Preston Sturges, especialista em ficções que casavam a observação social com a falsificação do real, extraindo daí as devidas consequências humorísticas; e também evocou, ou deu azo a que se evocasse, Frank Capra, que de modo menos sofisticado (ou talvez apenas mais directo e mais sentimental) andou por territórios semelhantes - e a respeito de Capra, não é, com certeza, mera coincidência que o "mayor" de "State and Main" (que se chama George Bailey) seja um homónimo da personagem de James Stewart em "Do Céu Caiu uma Estrela".

Para manipulador, manipulador e meio. Independentemente deste tipo de questões referenciais, no entanto, dir-se-ia que Mamet vai sobretudo buscar à época clássica um cenário social: esse cenário é o da "Americana" (aquela América provincial e bucólica que nos velhos tempos de Hollywood alimentou vários géneros, da comédia ao melodrama), reproduzido na pequena cidade de Waterford onde tudo se passa, com lugares e habitantes directamente importados dos anos 40. O motor narrativo de "State and Main" é a chegada a esta pacata cidade do "circo do cinema", vindo directamente de Los Angeles, através de toda uma equipa que aqui vem rodar um filme de época - e isto gera, como é fácil de perceber, uma contradição entre níveis de real que Mamet muito se diverte a explorar: de certa forma, "State and Main" é a história da visita do cinema dos anos 90 (ou do ano 2000, conforme se queira) ao cinema dos anos 40.

Tipificada da maneira como está tipificada, a cidadezinha de Waterford é tão artificiosa como os artifícios do cinema - é importante ressalvar isto para deixar claro que Mamet não se dedica a um simples exercício de oposição entre a suposta "pureza americana" de Waterford e a "corrupção" mais ou menos "babilónica" da troupe cinematográfica. Até porque estes dados se invertem, e os corruptos (o político local, que só se mantém irredutível até que lhe oferecem uma mala cheia de dólares) e os manipuladores (a rapariga da livraria, animadora do grupo de teatro local, que "oferece" à personagem de Philip Seymour Hoffman a mais convincente "mise en scène" de todas, naquela que é provavelmente a melhor sequência de todo o filme) acabam por estar no lado mais inesperado. O que interessa a Mamet é o confronto entre códigos e linguagens diferentes, e se há alguma moral a extrair de "State and Main" ela é irresistivelmente irónica: para manipulador, manipulador e meio, e é o cinema o principal manipulado neste confronto com o real.

Segunda oportunidade. O que é já dizer alguma coisa sobre a paródia do mundo de Hollywood que "State and Main" também configura, e que é um dos aspectos mais sumarentos do filme de Mamet. A equipa que vem rodar o filme é descrita como um bando de poltrões mais ou menos assumidos (do realizador aos actores, passando pelo produtor), permanentemente desarmados pela impossibilidade de pôr na prática, em Waterford, todos os tiques que trazem de Los Angeles. Asseguram-se, por este lado, os efeitos cómicos, incluindo certamente várias "private jokes". A sagacidade de Mamet impede no entanto a transformação das personagens em caricaturas monodimensionais, e aqui vale a pena registar a fabulosa interpretação de William H. Macy, no papel de um realizador dividido entre o seu visionarismo artístico e a necessidade, imposta pelos ossos do ofício, de desenvolver um apurado sentido prático.

A tudo isto, "State and Main" acrescenta ainda uma componente "filosófica" - a expensas da personagem de Philip Seymour Hoffman (a outra grande interpretação de "State and Main"), o argumentista em crise de confiança e auto-estima pelas constantes alterações que o seu guião tem de sofrer, crise exponenciada pelo teste à sua honestidade que constitui o seu depoimento (potencialmente fatal para a continuação da rodagem) num "fait divers" sucedido com a "estrela" (Alec Baldwin). Aqui, o tema é o da "segunda oportunidade", ou, na versão de um habitante local, o da "segunda ocasião para se cometer o mesmo erro outra vez". Num último golpe irónico, Mamet não resolve o dilema, e deixa que as circunstâncias se encarreguem de resolver o problema - uma intervenção da providência que, se calhar, é a última (e invisível) referência de Mamet ao cinema de Sturges e de Capra.

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