Crimes Invisíveis

Ao longo de uma carreira que já ronda os trinta anos, Wim Wenders tem andado quase sempre à volta de dois aspectos fundamentais, que não só contribuem para a definição temática da sua obra como, em muitos casos, estão na base das principais coordenadas formais de cada projecto. Com maiores ou menores desvios, e sem prejuízo da abertura para outras questões (o trauma germânico do pós-guerra seria uma delas), dir-se-ia que o cinema de Wim Wenders surge em primeiro lugar marcado pela cinefilia, ou mais concretamente por um fascínio pela memória do cinema americano clássico, que depressa se transforma numa relação ambígua (misto de atracção e repulsa) com a própria América. Da sua geração, a de Fassbinder, Schroeter ou Thome, Wenders era evidentemente o mais cinéfilo, ou pelo menos aquele cujo cinema mais directamente encenava essa cinefilia - e pensamos menos na obra em que Wenders filma a morte de Nicholas Ray ("Lightning Over Water") do que na conjugação de referências e evocações polvilhada ao longo de quase todos os seus filmes. A par disto surge, talvez inevitavelmente (até porque, como alguém notou, "cinefilia rima com necrofilia"), uma profunda sensação de perda derivada do sentimento de que o "cinema morreu", e de que esse mesmo cinema para pouco mais pode servir hoje do que para cantar o seu próprio requiem. Sensivelmente a partir de "Até ao Fim do Mundo", Wenders mudou um pouco as agulhas: o luto pelo cinema passou a ser feito através de um olhar sobre a "imagem" e sobre as suas múltiplas formulações contemporâneas, ficando Wenders num impasse sobre se este triunfo da "imagem" representa afinal uma inesperada vitória do cinema ou se, pelo contrário, é a sua definitiva certidão de óbito. No fundo, é uma questão moral que Wenders não resolve, por ser incapaz de decidir se esta contemporânea "civilização da imagem" é obra de Deus ou do Diabo. Até aqui falou-se de temas, não de resultados; e a verdade é que, apesar da potencial produtividade destas questões (veja-se o que Godard tem feito a partir de dados e convicções bastante aproximáveis) o cinema de Wenders se encontra em acelerada perda de interesse há bastante tempo. Incapaz de elaborar formalmente as suas preocupações, Wenders fica rapidamente preso de um retórica (verbal e visual) tão desinteressante quanto estéril - e pense-se no seu filme anterior, "Viagem a Lisboa", e na inenarrável palestra final da personagem de Patrick Bauchau. E deste ponto de vista, "Crimes Invisíveis" pouco parece vir adiantar para além da confirmação de que Wenders é um cineasta estagnado, para não dizer um cineasta absolutamente esgotado. À partida, "Crimes Invisíveis" condensaria todas as questões caras ao cineasta. Tudo se encontra neste filme americano rodado em Los Angeles: a América e as suas contradições, morais inclusivamente; o cinema americano, do passado e do presente; a "civilização da imagem", nas suas várias manifestações. A história passa-se nos meios cinematográficos (a personagem de Bill Pullman é um produtor em crise de consciência, e Udo Kier é o realizador europeu "artista" que trabalha para ele), Samuel Fuller faz de "símbolo moral" da personagem de Gabriel Byrne, e a omnipresença das câmaras e de qualquer outro tipo de artefacto ao serviço do olhar humano está na raiz do "thriller" que "Crimes Invisíveis", no fundo, pretende ser. Esse pode ser um dos motivos do problema. Wenders quer fazer um verdadeiro "filme americano", não apenas em termos geográficos mas sobretudo no que toca à apreensão de procedimentos e convenções de género - sobretudo, as do "thriller" e as do "film noir". Mas, animado de um sentimento porventura muito "europeu", aproxima-se delas com a intenção de conjugar a "tese" com o "entretenimento". Para verificar o quê? Que, evidentemente, o cinema americano já não pode ser o que foi porque os seus modos de funcionamento se alteraram radicalmente; que sim, que vivemos numa sociedade onde deter o poder se confunde cada vez mais com deter o controlo sobre as imagens e sobre a sua produção; e que, claro, a violência não é um dado intrinsecamente atribuível às imagens mas antes aos homens que as fazem, as manipulam e as usam. O pior sinal da crise de Wenders não é que sejam estas as conclusões, mas que elas tenham, quase literalmente, que ser "ditas" e explicitadas até à exaustão no interior dum sistema formal que se limita a macaquear ("auto-conscientemente") meia-dúzia de clichés do "thriller" como forma de "encriptação" da mensagem. "Crimes Invisíveis" é um filme que não funciona, por onde quer que o vejamos, e que tem alguns momentos francamente ridículos (quase todas as cenas com o pobre Gabriel Byrne no observatório, por exemplo). Mesmo ao nível da mera apropriação de mecanismos narrativos, e se nos lembrarmos, entre outras coisas, da cena de perseguição no metropolitano em "O Amigo Americano", "Crimes Invisíveis" vem também confirmar que Wim Wenders, para além de esgotado, perdeu a mão.

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