Uma olhadinha na morte de João Ubaldo Ribeiro

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João Ubaldo Ribeiro

O novo romance do escritor brasileiro, "O Albatroz Azul", tem "embocadura de livro grande", mas resolve-se em 200 e poucas páginas. É uma reflexão sobre a morte digna dos maiores, com saga familiar em fundo.

Cada livro novo de João Ubaldo Ribeiro devia ser motivo não dizemos de feriado mas pelo menos de festa. Por vários motivos, quanto mais não fosse por esse portento da literatura que era "Viva o Povo Brasileiro", de 1984, um dos poucos livros editados no pós-guerra a merecer sem a mais pequena dúvida o epíteto de obra-prima. E quando dizemos "um dos poucos livros (...) a merecer", não estamos a cingir-nos ao Brasil, antes a referir-nos a este mundo inteiro de livros medíocres semanalmente laudados com cinco entediadas estrelas por críticos e leitores medíocres.
Assim sendo, "O Albatroz Azul", primeira obra de Ubaldo Ribeiro em sete anos merece toda a atenção, para mais sendo a sua primeira obra desde o Prémio Camões (atribuído no ano passado). É sempre difícil vencer a barreira de um prémio de consagração, mas este ex-jornalista e ex-guionista nascido há quase 69 anos em Itaparica, local onde decorre a acção, sai-se por cima: a obra é um comovente solilóquio de um velho, Tertuliano Jaburu, que intui, contra o senso comum, que o seu neto nascerá com o cu virado para a lua, o que redimirá a sua vida. Daí parte-se para uma saga familiar em que se descobre o grande segredo do bastardo Tertuliano - é, em última instância, a análise de um tempo que passou, do cruzamento dos povos brasileiro e português.

"O Albatroz Azul" é, assume João Ubaldo Ribeiro, um livro com muito de seu, das suas memórias de família. É também uma forma de dar uma "olhadinha" na sua própria morte, confessa. E é, em última instância, um livro sobre essa sageza que só o tempo traz: a consciência de que, como admite Ubaldo Ribeiro nesta "conversa" em tom confessional, não sabemos nada. Bem, uma coisa sabemos: as perguntas foram enviadas por email, mas as respostas vieram em quatro longos ficheiros áudio. Tentámos editar o menos possível, para que se tenha acesso ao humor e à humildade deste extraordinário escritor.

Demorou muitos anos a voltar à edição. Alguma razão em particular?

Isso se deveu a uma série de pequenos incidentes. É meio ridículo dizer isso, mas a maior parte deles ocorreu com os meus computadores - só agora estou com computador estável. Mas isso é história muito comprida e pode haver gente que se sinta acusada com a minha revelação, por isso não quero sequer falar disso [risos]. Se a autor abandona o romance no começo, é comum que aconteça o que Zé Rubem Fonseca, meu amigo e grande escritor, chama de desandar: o romance desanda e perde-se o contacto com os personagens, acaba-se perdendo o romance. Acabou acontecendo isso comigo. Eu devia um livro à Nova Fronteira. Fiz um romance para entregar e esse romance desandou - não esse, que publiquei, mas vários romances desandaram. Antes de "O Albatroz Azul" veio todo um cemitério de embriões de romances. Esta entrevista vai-se prolongar, mas a culpa não é minha, é sua.

"O Albatroz Azul" tem como epígrafe a frase "Ninguém sabe". No livro, ninguém sabe nada. Só o protagonista, Tertuliano Jaburu, sabe uma coisa e ainda por cima uma coisa improvável. A epígrafe serve como programa literário do que se vai seguir, ou é a sua visão sobre o mundo?

As minhas epígrafes são sempre minhas mesmo, não tomo emprestado de ninguém. Até sei porquê, mas é uma história comprida que não deve interessar a ninguém. Eu pus essa epígrafe porque realmente acho que no livro transparece que nem mesmo a sabedoria de Tertuliano, que de certa forma é venerada pelos seus contemporâneos, porque ele é sábio, um velho vivido e equilibrado, chega a esclarecer verdade alguma - nem sei se essa verdade é esclarecida no romance. Mas eu acho que o romance mostra o que a epígrafe diz: que ninguém sabe, que não é dado ao homem saber a resposta a essas indagações, não importa quão antigas. Refiro-me a indagações sobre a existência, a vida e a morte, o tempo, questões que se diriam filosóficas, à falta de melhor palavra.

Fica-se com a ideia de que, se quisesse, poderia prolongar indefinidamente o passado de Tertuliano Jaburu, criando um livro da dimensão de "Viva o Povo Brasileiro". Quis optar pelo poder da narração concisa, em vez de soltar a narrativa e correr o risco de ser massivo?

É uma pergunta perspicaz, porque este livro começou com embocadura de livro grande, vamos dizer que de proporções semelhantes a "Viva o Povo Brasileiro", mas no meio do caminho, não sei porquê, ele começou a parecer um livro pequeno. Eu sou um escritor muito assim, vou muito pelo embalo do momento, não sei o que é que acontece. Basta dizer que como sempre pus o título ao começar a escrever mas até meados do livro eu não sabia que albatroz azul era esse. O título foi ditado por algum fantasma do inconsciente. Aconteceu dessa forma que para mim é misteriosa, não sei se para os outros é costumeira.

Que percentagem de ficção há na história da família portuguesa de onde vem Tertuliano? Até que ponto o grau de tragédia que há nesta família corresponde ao que conhece dessas famílias instaladas no Brasil?

Ah, histórias que eu conheço há certamente. Há histórias, episódios, personagens, mais ou menos tirados da vida real. Acho que nesse caso há constantemente e bastante conscientemente referência à minha própria família. O meu pai, Manuel Ribeiro, era filho do português João Ribeiro e da brasileira Amália Ribeiro. Essa família portuguesa não tem nada a ver com o livro, que eu saiba, mas a família da minha mãe também é de origem portuguesa - mais remota, visto estarem há séculos em Itaparica, Eu não conheci esses meus ancestrais portugueses - a família da minha mãe é o meu ramo itaparicano. O seu ascendente português, Osório Pimentel, acabou pelo ramo legítimo, ou assim chamado, porque os homens Osórios Pimentel só geraram mulheres; são gala feminil como se diz no livro. E assim se perdeu o nome da família com os casamentos. Os genes permanecem, mas o nome desapareceu. Seguramente há coisas na minha história familiar ou de gente próxima que estão no livro.

Aquela comadre do avô de Tertuliano, que educa o pai de Tertuliano, é uma figuração matriarcal que pode ser vista como universal (a fêmea enquanto guardadora a todo o custo do ninho)? Ou isso não lhe importou para nada?

Não me importou. O que eu [quis], certamente baseado no que já vivi ou me contaram, foi imaginar o que seria uma brasileira dessa época, ainda não de todo desvinculada das suas raízes portuguesas, ainda com uma linguagem alusitanada - não sei se dá para um leitor português sentir essa linguagem, mas o brasileiro certamente sente.

Podemos dizer que "o Mal" é representado pela comadre do avô de Tertuliano, que está próxima de uma visão antiga em que a mulher era portadora da desgraça? Não há aqui a denúncia de um mundo tremendamente machista?

Não acho que ela personifique "o Mal", nem acho que "o Mal" seja uma presença no livro. Eu não quero - ou o narrador não quer - mal algum à senhora. O narrador a compreende. Ela é fruto daquela época. É uma mulher que poderia ter existido, e como ela certamente muitas outras existiram. Era a esperteza daquela época: inteligente, loquaz, é pelo menos uma mulher que tem as suas más qualidades [risos]. Isso aí já é acto falhado. Ela raciocina sob uma óptica torta, mas comum na época, machista, de submissão feminina, da mulher que trabalha por dissimulação, por insídia. As mulheres aprendiam essas armas na época, e isso sobreviveu até aos nossos tempos, se bem que muitíssimo enfraquecido. Não quis denunciar - isso talvez seja uma palavra demasiado forte - um mundo machista, mas talvez mostrar lembrar esse mundo, mostrá-lo.

A relação do pai de Tertuliano com as "irmastras", as filhas da comadre do seu pai, pode ser considerada incestuosa?

Não acho que seja incestuosa, não. Elas não eram parentes de sangue dele, eram filhas do padrinho com a madrinha. O facto de serem criados juntos não quer dizer nada. Relações que podem ser inequivocamente chamadas incestuosas sempre existiram e ainda existem, mas não foi o caso, não quis falar de incesto. Tenho impressão que essa realidade, a de Iacensinha e de Juvenal, teria sido aceite como normal em várias famílias no tempo da juventude da minha mãe.

Há uma espécie de buraco entre o passado de Tertuliano e o seu presente. Achou que não era necessário explorar o que lhe aconteceu entretanto, ou que o livro ficava mais eficaz se o leitor tivesse de adivinhar?

Achei que não era relevante para o desenrolar do romance, então ficou assim.

Diga-me se concorda: Tertuliano redime o "Mal" herdado, mas isso custou-lhe uma vida de silêncio e, talvez, de solidão. A paga dele pela sua liberdade é a culpa, a vergonha?

Não sei. Mas de facto a vida dele foi meio cerceada - ele seria outra pessoa se houvesse concordado em negar a mãe e fazer o que se esperava dele. Ele teve a virtude de uma renúncia dramática, não diria trágica mas dramática, de grande conteúdo na sua vida psíquica.

Tertuliano é branco e acaba, parece-me, no meio dos mulatos. Uma parte do respeito que a comunidade tem por ele parece vir daí, do silêncio com que aceitou ser socialmente rebaixado. Concorda?

Essa pergunta tem uma percepção errónea, talvez por você não estar familiarizado com certos padrões de convivência do lugar onde se passa o livro. Porque o livro dá total desimportância à cor dos personagens. Ver Tertuliano como socialmente rebaixado por conviver com mulatos e negros é uma visão falsa do que acontece. Recentemente em Itaparica morreu um senhor amigo de minha mãe, branca, descendente de portugueses - do lado paterno certamente tenho sangue negro e dizem que índio, mas pelo lado materno não -, contemporâneo dela, seu Didi: era respeitadíssimo e homenageado por toda a comunidade, que o tinha em alta conta, em grande deferência. Então não era ser rebaixado conviver com mulatos e negros, era natural. A maioria dos leitores há-de ver como você viu, mas não é assim. Eu dou a esse negócio a importância que é devida: nenhuma. Eu odeio racismo. Racismo é um sintoma do atraso da humanidade, uma coisa repelente, uma perda de tempo grotesca.

Parece a mesma pergunta mas não é: Tertuliano diz várias vezes que lhe roubaram a vida, por isso podemos inferir que para ele foi mesmo um rebaixamento social?

Rebaixamento social só com o nome [de família], aí sim. A decisão dele acarretou isso. Ele passou a ser um representante oficial da linha bastarda da família. Mas ele escolheu isso por uma questão de lealdade, de amor ao ventre materno que queriam que renegasse - e pagou o preço disso, passando a ser bastardo.

A voz do narrador é simpática para com o protagonista, depois toma tons quase sarcásticos com os negros que enganam a comadre do avô de Tertuliano e é, por vezes, arrepiante com a mãe adoptiva. Estas alterações de tom foram propositadas ou ditadas pelo instinto? Era importante que se notassem essas nuances na voz do narrador?

Não quis ser sarcástico em relação aos negros que enganam. Se resultou nisso também não foi intencional. É curioso como conversar com um leitor atento traz informações para um autor, porque eu não tinha visto isso. Eu imaginei que o tom que eu dava à conversa dos negros que embrulharam a comadre era somente para gozar com a cara dos brancos. De qualquer modo, muito obrigado pela observação, vou prestar atenção, tenho de reler o livro. Agora, que é importante que notem a nuance com a voz do narrador sim, porque apesar de eu dizer que não quero ser antipático com a comadre, certamente também não aprovo o que ela diz, por isso queria que isso transparecesse na voz do narrador.

Queria retratar o universo do protagonista como muito promíscuo (e o mesmo para o universo branco e português de que ascende) ou isto corresponde mesmo ao universo brasileiro?

Queria, mas não escandalizando. Está vendo?, aí já apareceu uma ligação com a famosa vida real. Acabo de me lembrar de meu tio-avô Neco, que era de um ramo bastardo da família de minha mãe, e segundo o que se diz deixou 200 filhos. Hoje são cada vez menos os que ouviram falar de meu tio Neco.

Nota-se-lhe um apuradíssimo ouvido para a linguagem do povo, mais exacta do que nunca. As frases feitas, o ritmo da linguagem, estão-lhe na cabeça, ouve com atenção, aponta-as?

Acho que sou meio papagaio. Desenvolvi, com o tempo, a capacidade de fazer com que a palavra escrita pareça a palavra falada - o que na realidade nunca é. Sou um papagaio atento, nunca tomo nota dessas coisas, tomo tudo de ouvido.

Para quem não conhece João Ubaldo Ribeiro, "O Albatroz Azul" é um festival de grande escrita. Mas para quem leu, por exemplo, "Viva o Povo Brasileiro", nota-se uma maior contenção no "barroco" da escrita. Já não lhe apetece fazer da escrita um festival, limpou-a propositadamente?

Muito obrigado pelo elogio. A razão é simples: o "Viva o Povo Brasileiro" dava mais oportunidade para isso e n'"O Albatroz Azul" essa oportunidade não é tão vasta, os falantes não são tão sofisticados, a época é diferente dos [anos] 1600. Se eu estivesse fazendo um livro semelhante em escopo ao "Viva o Povo Brasileiro", provavelmente caía no barroco de novo. Eu gosto um pouco de barroco como motivo, faz parte de minha herança: sou baiano e então cresci vendo isso. Sou todo abarrocado, ainda me emociono quando entro na Igreja de São Francisco na Baía, que é um primor de arte barroca. Em tudo quanto é sítio o barroco fascina-me.

As primeiras 70 e tal páginas dos livro passam-se quase todas dentro da cabeça de Tertuliano. Não conseguiu parar de entrar na cabeça dele?
Você mesmo respondeu à pergunta: não consegui parar de entrar na cabeça dele.

Tertuliano acha que vai morrer e este é um livro sobre a morte. Perdoe a indelicadeza: a sua idade levou-o a identificar-se com Tertuliano?

Tertuliano é uma forma de João Ubaldo Ribeiro rondar a sua própria morte sem ter de a olhar de frente?

É meio possível. Não descarto esta hipótese. Você não perguntou mas eu digo: vou fazer 69 anos em Janeiro. Não é descabido imaginar que arranjei um jeito de dar uma olhadinha na minha morte através de Tertuliano. Eu inicialmente pensei, como o leitor pensa, que a história seria sobre o menino que estava nascendo, mas acabou por não ser. Não sei porquê.

Se assim for, que balanço faz de tudo isto, da vidinha?

Digo como diz a epígrafe do meu livro: não sei. Não sei. Mas a vida tem sido boa comigo e não tenho queixa, não. Vivo do jeito que quero, tenho o que eu preciso, não tenho maiores cobiças em bens materiais, estou feliz, sou um escritor que tem alguns leitores, então o balanço da minha vida é positivo, tenho muito de que estar grato.

Há pouco tempo, em Portugal, uma cadeia de supermercados voltou a censurar "A Casa dos Budas Ditosos". Acha que o ser humano está condenado a ser estúpido?

Quem usou a palavra foi você, eu não quero usar nenhuma palavra mais forte. Em primeiro lugar, qualquer censura é estranha. Mas depois eu soube, através de um blogue português, de um homem que foi a uma dessas grandes superfícies e que encontrou livros e filmes pornográficos da mais baixa categoria. Tenho impressão que houve uma dose de preconceito nisso e fiquei chateado porque era Portugal. Na altura um blogue português me criticou pelo que eu disse depois de receber o Prémio Camões, disse que eu recebi o Prémio Camões deseducadamente. A única falta de educação que cometi foi não dizer mentirosamente que achava que não merecia. Se eu achasse que não merecia não teria aceitado. As pessoas esperavam ouvir a habitual declaração hipócrita: "Não, na modéstia dos meus dotes, na humildade da minha contribuição...". Não cumpri o guião habitual. Ele disse que eu teria dito que o Camões não tinha importância porque era um prémio de língua portuguesa. O que eu disse foi o contrário: eu disse que no Brasil se dá importância a qualquer premiozeco americano, em lugar de dar importância às coisas daqui, da nossa língua. No Brasil não se dá a importância devida ao Prémio Camões, que devia ser a consagração de um autor. Foi isso que eu quis dizer. Um abraço e tudo de bom.

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