Os velhos abusos negacionistas e os novos medos do Japão

Pela primeira vez, o Japão teme correr um risco de segurança se não puder confiar na protecção americana no caso de um conflito ?com a China.

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150 deputados japoneses visitaram o santuário Yasanuki Yoshikazu Tsuno/AFP
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1. Barack Obama inicia hoje, em Tóquio, uma visita à Ásia para reafirmar a presença americana, dar garantias de segurança aos aliados, baixar a tensão no Mar da China do Sul e, também, “unir os aliados” — caso do contencioso entre o Japão e a Coreia do Sul. O pano de fundo é o país onde Obama não vai: a China. O ponto sensível do programa é o Japão.

Obama quer reafirmar a “viragem para a Ásia”, cuja realidade suscitou dúvidas nos últimos meses. Tom Donilon, ex-conselheiro de Segurança Nacional, resumiu assim os objectivos: “A viagem do Presidente reforçará os elementos chave do reequilíbrio. Na Ásia do Nordeste, reafirmará a importância das alianças vitais com o Japão e a Coreia do Sul. Na Malásia e nas Filipinas, sublinhará o renovado enfoque no Sueste Asiático, dinâmico bloco económico de 600 milhões de pessoas.”

2. Chineses e japoneses decidiram “facilitar” a vida a Obama reabrindo as usuais “guerras da memória”. No sábado, um tribunal de Xangai ordenou a apresamento de um barco japonês por um litígio que remonta a 1936. Para reaver o barco, os armadores deverão pagar o equivalente a 148.500 euros a título de “indemnização e juros” — o que significa uma humilhação. Tóquio denunciou uma decisão “lamentável” que viola os acordos bilaterais de 1972, em que Pequim se comprometeu a não exigir novas indemnizações relativas à ocupação nipónica entre 1931 e 1945. As autoridades chinesas dizem tratar-se de um mero “litígio comercial”.

Uma das preocupações americanas é fazer baixar a “febre” na região, muito alta desde a eclosão do conflito sobre os ilhéus Senkaki-Diaoyu, em 2012. Obama deverá pedir ao primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, que não volte a visitar o santuário Yasanuki, o templo xintoísta que guarda o “registo das almas” dos guerreiros japoneses, incluindo 14 “grandes criminosos de guerra”. A sua última visita, em Dezembro, enfureceu Pequim e Seul. Ontem, 150 deputados japoneses visitaram ostensivamente o santuário. Pequim declarou que as relações com o Japão estão no ponto mais baixo desde há décadas. No primeiro trimestre deste ano, os investimentos japoneses na China caíram 50% em relação a 2013.

Na Ásia, a memória serve para “fazer a guerra”: é um poderoso instrumento de política externa e um não menos poderoso factor de legitimação interna. A confiscação do barco — lembrar o passado — é uma mensagem para Tóquio e também para Washington.

3. A crise económica internacional incentivou Pequim a avançar os seus peões no Mar da China e a fazer demonstrações de força que assustam o Japão. A China não pode rivalizar militarmente com os Estados Unidos, recusa uma política de confrontação mas quer alargar a sua influência na Ásia. A prova de força em Senkaki-Diaoyu é encarada no Japão como uma ameaça: o que está em jogo não são os ilhéus mas a relação de forças na região e a solidez da aliança nipo-americana.

O nacionalista Shinzo Abe ganhou as eleições de Dezembro de 2012. Para lá de uma nova política económica (“Abenomics”) apontou um desígnio ambicioso: “Emancipar o Japão da ordem do pós-guerra”. Isto passa pela revisão da Constituição pacifista de 1947, imposta pelos americanos durante a ocupação e que proíbe o Japão de recorrer à guerra e limita o seu armamento. Para os pacifistas a Constituição é “sagrada”. Para os nacionalistas fez do Japão um “anão político” na cena internacional, um “vassalo” dos Estados Unidos encarregado de “pagar as contas”.

A “normalização militar” japonesa vem sendo feita por etapas, desde a Guerra do Golfo de 1991. Em 2013, o Parlamento japonês aprovou um aumento das despesas militares e, no fim do ano, uma nova “estratégia de Segurança Nacional”. Sob o lema de “pacifismo proactivo”, visa responder às mudanças no equilíbrio político-militar no Pacífico e às ameaças que Tóquio considera mais agudas: o poderio militar chinês e o nuclear norte-coreano. É uma doutrina defensiva mas “mostra a determinação do Japão se o bluff chinês se vier a transformar numa real acção militar”, declarou na altura um analista. No dia 10, Tóquio levantou as restrições à exportação de armamento.

4. A prioridade do Japão é conter a potência da China. Por isso não pode reduzir a dependência estratégica perante os Estados Unidos, antes quer reforçar a aliança em que é subalterno. Mas, ao mesmo tempo, quer desempenhar um papel mais relevante na ordem regional, fazendo do Japão uma potência política “sem limites à sua soberania”. Se a China não gosta, também a Coreia do Sul se inquieta. Washington deseja que o Japão assuma um muito mais largo papel internacional mas considera isto contraditório com as tiradas “negacionistas” de Abe sobre os crimes de guerra: destinadas a “consumo interno”, dividem a aliança, ajudam a China, escandalizam europeus e americanos.

Tóquio é hoje um aliado tão indispensável quanto difícil. Mas também os japoneses têm um problema “existencial”.

Explica o analista Yoshi Funabashi, antigo director do Asahi Shimbun, o maior jornal japonês: “Pela primeira vez, o Japão teme correr um risco de segurança se não puder automaticamente confiar na protecção americana. Teme que os EUA sejam tentados a evitar ficar ‘amarrados’ à aliança EUA-Japão no caso de um conflito territorial sino-japonês e, até, em conflitos militares.”

Se “a credibilidade for minada”, verificar-se-á um “efeito dominó” no conjunto da Ásia-Pacífico. “Se o Japão duvidar do compromisso americano, outros o farão: Coreia do Sul, Filipinas, Indonésia, Austrália.” Será esta a pedra de toque das conversações de Obama em Tóquio.

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