“O graffiti sempre se manifestou, o graffiti está reclamando”

Documentário "Cidade Cinza", dos brasileiros Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo, descreve graffiti de São Paulo como reacção a uma cidade que "sufoca"

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"O graffiti sempre se manifestou, o graffiti está reclamado" Vera Moutinho

Em Julho de 2008, um mural de graffiti pintado na Avenida 23 de Maio, em São Paulo, apareceu cinzento. Quase 700 metros quadrados com obras de artistas de graffiti brasileiros como Os Gêmeos e Nunca, que na mesma altura pintavam a fachada da Tate Modern em Londres. A prefeitura de São Paulo pediu desculpa, os artistas refizeram o mural, mas a política de “Cidade Limpa” ainda apaga arte nas ruas de São Paulo. Uma arte que, diz Marcelo Mesquita, autor do documentário “Cidade Cinza”, há muito que é voz da insatisfação dos brasileiros.

Plano aéreo da cidade de São Paulo. Prédio, prédio, prédio. Cinza, cinza, cinza. “São Paulo está muito quieta, os jovens estão muito calmos”, diz a dupla de artistas brasileiros Os Gêmeos, sentados num colchão com vista para o mural apagado. Estávamos em 2008, no início da rodagem do documentário Cidade Cinza, de Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo. Na projecção do filme que o PÚBLICO acompanhou em Janeiro deste ano, no Cinema Itaú, na Rua Augusta, em São Paulo, o cenário já é de pós-manifestações. Em Junho de 2013, milhares de brasileiros saíram à rua. Muito perto dali, a Avenida Paulista foi um dos palcos privilegiados dos protestos que começaram por tentar impedir o aumento do preço do bilhete de autocarro mas que se transformaram em manifestações contra problemas estruturais no Brasil, da saúde à educação, dos transportes à corrupção.

No escuro da sala de cinema, os irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo – a dupla de artistas Os Gêmeos, com trabalho reconhecido mundialmente – continuam dizendo que quem pinta as paredes, como eles, “está falando, a cidade está a sufocar”. A denunciar e pedir mudanças, muito antes do mar de gente que saiu às ruas. “O graffiti sempre se manifestou, está aí reclamando… Eles estão subindo nos prédios para o povo ser ouvido. Dizem que naquela época, em 2008, o graffiti era uma das únicas manifestações da cidade em que os jovens estavam falando algo. E era muito verdade. Quatro anos depois, olha o que aconteceu. Ele estava cantando a bola. Porquê? Porque ele está na rua há 20 anos. E quem está na rua sabe dos problemas”, diz-nos Marcelo Mesquita no escritório da produtora SALA 12, lançada em 2007 com Cidade Cinza, que espera agora conseguir fazer chegar o filme a Portugal.

O documentário teve estreia nacional no Brasil em Novembro do ano passado, depois de um campanha de crowdfunding que ajudou a financiar a produção. Em Cidade Cinza - que para além de Os Gêmeos conta com a participação de Nunca, Nina, Finok, Zefix e Ise, e banda sonora de Criolo e Daniel Ganjaman - os graffiti de São Paulo são descritos como uma reacção à cidade verticalizada, com falta de oportunidades para todos. ”Porque é que o Rio de Janeiro não tem a mesma cena de graffiti? Porque eles têm outras válvulas de escape, a praia, as montanhas”, explica Marcelo. A par de uma viagem pela história dos graffiti em São Paulo, e da forma como ganhou personalidade própria para lá da influência norte-americana, o filme denuncia a “política do cinza” que entrou em força na cidade entre 2008 e 2009.

A Lei Cidade Limpa foi criada em 2007 no mandato de Gilberto Kassab (perfeito de São Paulo entre 2006 e 2012) com o objectivo de reduzir a poluição visual, permitindo que muitos dos graffiti da cidade fossem apagados. A prefeitura contratava empresas para fazer o serviço de limpeza e cada uma acabava por seguir as suas próprias regras. No documentário, os realizadores acompanharam uma dessas “brigadas” que cobriam com tinta cinzenta os graffiti da cidade, mostrando o processo de “curadoria” da equipa: “Você acha que isso é arte? Esse arranca fora, esse deixa que está bonito”, diz para a câmara Luiz Alves da Costa, auxiliar de gabinete da Subprefeitura de Pinheiros, São Paulo. O que é feito da “política do cinza” hoje? “Ela sofre reduções e significativos aumentos, é difícil de compreender. É um serviço terceirizado. A prefeitura paga a algumas empresas que têm de cumprir uma meta de apagar tantos metros quadrados com tinta cinza por dia”, afirma Marcelo Mesquita.

Em Maio do ano passado, depois de a prefeitura ter apagado três murais de Os Gêmeos no bairro do Glicério, em São Paulo, a dupla brasileira escreveu numa parede: “Sr. Perfeito: nesta cidade existem muitos problemas sérios que precisam de resultados. Não gaste tempo e $ apagando graffiti nas ruas!” Para Os Gêmeos, como para Marcelo Mesquita, não é só uma questão de não apagar a arte paulista. Nem tão pouco de decidir o que merece ficar ou não. É um combate à censura, porque cada desenho é uma voz: “Se você entender que o ‘cara’ vai lá colocar o nome ou a sua mensagem na rua porque ele não está concordando com esse status quo de aceitação do poder público, você não pode apagar. O filme se posiciona contra a censura. Apagar o que é dito nas ruas. Se não existe de facto um diálogo entre o poder público e a sociedade, é censura.”

 

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