Nova técnica cria células capazes de originar todos os tecidos do corpo

Até aqui, obrigar uma célula viva a rebobinar o tempo e a ser capaz de gerar um organismo exigia clonar um embrião ou uma manipulação genética. Mas pode existir uma forma muito mais rápida e simples de o fazer.

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Neste embrião de ratinho, as células criadas com a nova técnica (fluorescentes) participaram no desenvolvimento de todos os órgãos Haruko Obokata

Cientistas nos EUA e no Japão descobriram que é possível reprogramar células de mamíferos já diferenciadas submetendo-as simplesmente a um “stress ambiental”, mais precisamente a um curto banho numa solução ácida. A confirmar-se no ser humano, esta forma de reprogramação celular, que não exige nem a clonagem de embriões nem a manipulação genética das células – as duas opções até aqui disponíveis –, poderá ter implicações fundamentais para a medicina regenerativa personalizada. Os resultados são publicados na revista Nature com data de quinta-feira.

Este tipo de reprogramação celular já tinha sido observado nas plantas, mas é a primeira vez que é demonstrado nos mamíferos. Quando uma planta sofre um traumatismo, forma um nódulo de células a partir do qual é possível regenerar uma planta novinha em folha.

Haruko Obokata, do Hospital Brigham and Women de Boston (EUA) e do Centro RIKEN de Biologia do Desenvolvimento de Kobe (Japão), e colegas decidiram ver se as células já diferenciadas de mamífero também podiam apresentar, em certas condições “traumáticas”, uma plasticidade deste tipo – e operar um radical “regresso à infância”, por assim dizer.

“Será que um simples traumatismo pode fazer com que uma célula madura, adulta, reverta para um estado de célula estaminal, que por sua vez possa dar origem a qualquer tipo de célula?”, interrogaram-se os co-autores (e irmãos) Martin e  Charles Vacanti, citados num comunicado daquele hospital norte-americano, onde ambos trabalham.

A equipa submeteu células diferenciadas de ratinhos recém-nascidos – mais precisamente, glóbulos brancos (ou linfócitos) do sangue – a uma diversidade de agressões externas, desde trituração e perfuração da membrana celular até subnutrição, passando por choques térmicos, banhos ácidos e exposição a altos níveis de cálcio. Todas elas obviamente “subletais”, escrevem os cientistas – mas levando as células até ao limiar da morte.

Diga-se ainda que as células tinham sido previamente manipuladas geneticamente de forma a ficarem fluorescentes se um dos seus genes, relacionado com a pluripotência (o tal “regresso à infância”) viesse a activar-se. Isso garantia que os cientistas conseguiriam detectar a reprogramação celular caso ela se verificasse a seguir ao tratamento traumático aplicado.

Bullying celular

Por incrível que pareça, tanto os dois tipos de agressões à sua integridade física (trituração e danificação da membrana) como um curto mergulho numa solução com uma acidez entre a do café e a do leite incitaram as células a reprogramar-se – com o banho ácido a revelar-se o mais eficiente na produção de células pluripotentes.

Bastou de facto mergulhar os linfócitos durante cerca de meia-hora na solução para se constatar que, passados uns dias, uma substancial proporção das células iniciais tinha sobrevivido e regressado à estaca zero do desenvolvimento, formando pequenos aglomerados esféricos, lê-se na Nature.    

Os cientistas designaram por STAP as células assim obtidas, a sigla em inglês de “aquisição de pluripotência desencadeada por um estímulo”. Estas células vêm assim juntar-se, como potencial terceira via para a produção de células estaminais, às células estaminais embrionárias (obtidas por clonagem) e às células estaminais pluripotentes induzidas (ou células iPS, obtidas em 2006 por manipulação genética).

A seguir, os cientistas foram ainda mais longe: introduziram as células STAP dentro de embriões de ratinhos em fase muito precoce do desenvolvimento, criando assim uma “quimera” – um organismo com uma mistura de células de várias proveniências. E viram-nas, passados uns tempos, a iluminar de verde fluorescente todo o corpo do embrião, confirmando que eram de facto capazes de dar origem aos tecidos de todos os órgãos do animal.

Todavia, as células STAP assim obtidas não são exactamente como as células estaminais embrionárias. Em particular, não têm grande capacidade de se renovar e de formar reservas duradouras. Mas aí também, os cientistas mostraram que, no meio de cultura adequado, essa capacidade aparece e as células STAP dão então origem a “linhagens robustas” de células pluripotentes.

Os cientistas pensam ter descoberto um estado absolutamente novo e único de pluripotência celular – e querem saber porquê e como é que esta radical redefinição do destino celular acontece. “O nosso trabalho sugere que, de alguma forma, isso acontece através de um processo natural de reparação celular”, diz Charles Vacante, que liderou o estudo, citado no já referido comunicado. Ou seja, devem existir mecanismos, ainda desconhecidos, que são activados por um estímulo externo e que “libertam” as células maduras dos seus “compromissos”, permitindo-lhes regressar a um estado primordial.

“Os nossos resultados mostram que a geração de células pluripotentes a partir das próprias células de uma pessoa, potencialmente utilizáveis para fins terapêuticos, é possível”, diz ainda Vacante. De facto, vai agora ser preciso ver se a técnica, demonstrada com células de ratinhos que tinham apenas uma semana de vida, funciona igualmente nas células de um ser humano adulto.

Notícia actualizada às 18h18.
 
 

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