Carta sobre uma muito amada

Last night I dreamt I went to Manderley again...” – é uma das mais célebres aberturas de um filme, Rebecca de Alfred Hitchcock. Quem a diz é Joan Fontaine, agora desaparecida, e a sua personagem tem uma particularidade: nunca sabemos o seu nome próprio, apenas que é a segunda mulher de Maxim de Winter (Laurence Olivier), que na casa daquele, Manderley, é constantemente confrontada e atemorizada pelo fantasma da anterior esposa, a Rebecca do título.

Nascida em 1917, Fontaine participara já em três filmes de relevo, A Damsel in Distress/Uma Donzela em Perigo de George Stevens, de 1937, o primeiro filme em que Fred Astaire actua sem Ginger Rogers, e Gunga Din, igualmente de Stevens, bem como The Women de George Cukor, ambos de 1939, mas não tinha ganho particular destaque em qualquer deles.

Reza a lenda – e no caso de Joan Fontaine, e da sua relação tumultuosa com a irmã, Olivia de Havilland, não é fácil destrinçar o que é factual e o que é efabulação – que ela foi uma das muitas candidatas ao papel de Scarlett O’Hara em E Tudo o Vento Levou, sem sucesso, pois Vivien Leigh viria a ser a escolhida, mas que teria sido ela a indicar o nome da sua irmã, Olivia de Havilland, que essa era já uma star, pela parelha que estabelecera em vários aventuras com Errol Flynn – Captain Blood, A Carga da Cavalaria Ligeira e As Aventuras de Robin dos Bosques, todos dirigidos pelo futuro realizador de Casablanca, Michael Curtiz – para interpretar Melanie, o que se concretizaria.

 E Tudo o Vento Levou é de 1939. A produção seguinte de David O’Selznick foi o primeiro filme americano de Hitchcock, Rebecca, essa foi a grande oportunidade de Fontaine. Curiosamente, viria a deparar-se com duas actrizes com as quais já se tinha indirectamente cruzado: teve de fazer face à animosidade de Olivier, que não escondeu que teria preferido para o papel a então sua mulher, precisamente Vivien Leigh, e, nomeada para os Óscares, perdeu para Gingers Rogers, por Kitty Foyle. Não obstante essa sua interpretação foi seminal: Fontaine afirmava-se não apenas pela sua presença física mas também pela voz, desde logo nessa invocação inicial, e estabelecia o protótipo das loiras de Hitchcock, antecipando Ingrid Bergman, Grace Kelly, Kim Novak e Tippi Hedren.

 A consagração viria no ano seguinte, com novo filme de Hitchcock, Suspeita, em que vivia atemorizada pela perspectiva de que o marido (Cary Grant) a tentava envenenar. Dessa vez sim ganhou o Óscar, o único alguma vez atribuído a um intérprete de Hitchcock, batendo nomeadamente a irmã Olivia, nomeada por Hold Back The Dawn/A Minha História, dirigido por Mitchell Leisen, com argumento de Charles Brackett e Billy Wilder.

 Foi nessa entrega dos Óscares que se tornou patente a animosidade entre as duas irmãs, que duraria até ao fim. Nota suplementar: Olivia viria a “bater” Joan, ganhando os Óscares duas vezes, com To Each His Own e A Herdeira.
Mas além dos dois filmes de Hitchcock, e mesmo mais do que por esses, Joan Fontaine permanecerá sobretudo recordada por uma das mais extraordinárias interpretações da história do cinema, a Lisa de Carta de Uma Desconhecida de Max Ophuls (1947), em que a sua personagem transcorre décadas de vida, desde a adolescência, e prodígio de narração, de novo pela sua voz-off. Carta de Uma Desconhecida, o filme e a Lisa de Joan Fontaine, é um favorito pessoal que ao longo dos anos não me canso de ver e rever.

 Tal como a Carta, adaptado de Stefan Zweig, também o seu filme seguinte, A Valsa do Imperador, já com Billy Wilder como realizador – depois de como argumentista ter escrito um papel que Olivia de Havilland interpretou, tem um enquadramento histórico-cultural austríaco. E seria ainda um autor nascido em Viena, Fritz Lang, que dirigiria Joan Fontaine no seu derradeiro filme americano, e na última extraordinária interpretação de Joan Fontaine, Beyond a Reasonable Doubt – que por incrível coincidência passa na Cinemateca Portuguesa esta terça-feira e de novo na quinta.

 Como Katharine Hephburn em Sylvia Scarlett de Cukor e As Duas Feras de Hawks, como Gene Tierney em O Fantasma Apaixonado de Mankiewicz e Amar Foi a Minha Perdição de John M. Stalhl, também Joan Fontaine duas ou três interpretações – mas outras houve – bastam e bastarão para a recordar como uma das maiores actrizes do cinema.

 Sobrevive-lhe Olivia de Havilland – como se até na morte tivesse havido competição –, que aos 97 anos é a decana, e também, mais jovem, Lauren Bacall, derradeiros ícones da idade clássica de Hollywood e do cinema americano.
Lisa/Joan, ficarás sempre connosco, contigo e por ti choraremos sempre.
 
 
 
 
 
 
 

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