Quando a ficção (quase) antecipa a realidade

Temos Papa, o filme de Nanni Moretti sobre um cardeal que é escolhido para liderar a Igreja mas que não aceita a nomeação, pôs-nos a pensar na possibilidade de um Papa renunciar ao cargo antes de morrer. Bento XVI fê-lo no domingo e, tal como a personagem do realizador italiano, pediu perdão.

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Michele Piccoli em "Temos Papa" DR

Para quem viu o último filme de Nanni Moretti (Temos Papa, 2011) é impossível não pensar no cardeal Melville, interpretado pelo veterano Michel Piccoli. Também ele denuncia o “peso do cargo” quando é escolhido para se sentar na cadeira de Pedro como líder da Igreja Católica. Também ele está ciente das fragilidades que o impedem de assumir tamanha responsabilidade.

A grande diferença entre Melville e Bento XVI – para além de um ter saído da cabeça do realizador italiano a quem devemos Querido Diário e de o outro ser bem real – é que o primeiro não chegou a exercer as funções que o conclave lhe atribuiu, e o segundo é Papa há oito anos.

Mas há semelhanças entre a carta de resignação de Bento XVI – um texto de grande humildade, em que o sumo pontífice se diz sem vigor para “governar a barca de S. Pedro e anunciar o Evangelho” – e o discurso que Melville-Piccoli faz na varanda do Vaticano, quando todos os cardeais esperavam que falasse à multidão de fiéis como o novo Papa: ambos dizem sentir o peso do cargo e pedem perdão à Igreja. Bento XVI por todos os seus defeitos, Melville por não se sentir digno de aceitar o pontificado. E fazem-no depois de um exame de consciência e com sinceridade, garantem.

“Queridíssimos irmãos, dou-vos graças de todo o coração por todo o amor e trabalho com que trouxeram até mim o peso do meu ministério e peço perdão por todos os meus defeitos”, escreve o Papa.

“Peço perdão ao Senhor pelo que estou prestes a fazer e não sei se ele poderá perdoar-me”, diz Melville da varanda, dirigindo-se à multidão que o ouve na Praça de S. Pedro. “Mas devo falar ao Senhor e a vós com sinceridade. Neste dia pensei muito em vós”, continua, para desespero dos cardeais que tinham feito parte do conclave e o rodeiam. Assumindo-se incapaz de guiar os fiéis e reconhecendo que também ele faz parte dos que têm de ser guiados, o cardeal que desiste (ou que, para muitos, resiste) no filme de Moretti conclui: “Não sou eu. Não posso ser eu.”

Com Temos Papa a ficção levou a um debate, ou pelo menos a uma reflexão, sobre algo que não acontecia há quase 600 anos – um Papa resignar. O filme mostra um cardeal que sonhou ser actor e que é escolhido para orientar milhares de milhões de fiéis em todo o mundo, quando os restantes pedem a Deus que não os escolha.

A decisão do conclave reunido na Capela Sistina deixa Melville em pânico e o seu comportamento leva as autoridades do Vaticano a pedir ajuda a um psicanalista ateu (interpretado por Moretti, é claro). Temos Papa acaba por ser, escreveu a crítica, uma viagem bem-humorada, quase burlesca, aos bastidores da Igreja Católica. E é, ao mesmo tempo, o resultado da forma como alguém que não acredita em Deus olha para o universo dos que acreditam e se põe a reflectir sobre a dúvida e sobre como ela pode ser libertadora, mesmo quando leva a decisões que, de tão difíceis, muitos achariam impossíveis. Porque o Papa de Piccoli – que Moretti parece construir com muito cuidado e uma certa ternura – decide por si. Bento XVI, escreve, também renuncia ao ministério de bispo de Roma “em plena liberdade”.

Joseph Ratzinger, 85 anos, foi eleito Papa em 2005 e deixará de o ser às 20h do dia 28 de Fevereiro de 2013 (19 horas em Lisboa). Aí, explica na sua carta de resignação com data de domingo, a sede de S. Pedro vai ficar vaga e caberá às autoridades competentes convocar novo conclave. E se a profecia – esta é a palavra que o diário italiano Corriere della Sera usa para estabelecer comparações entre a realidade e a ficção cinematográfica – de Moretti se cumprir? E se o escolhido pelos cardeais não se sentir à altura do cargo, como Melville?

Na entrevista que deu ao Ípsilon em Roma, em Novembro de 2011, a propósito de Temos Papa, Moretti resumia assim o enredo do filme: “Para mim, é sobretudo a história de um homem que se sente inadequado (…). É a história de um homem velho que percebe que para representar todos os outros homens tem de se anular a si próprio como homem. E encontra a força, porque penso que é uma força e não uma fraqueza, para interrogar os seus limites.”

O cineasta, que diz não ter tido qualquer preocupação em ser realista – “Fiz um filme sobre o meu Vaticano, o meu Papa” –, explicava na mesma entrevista que, para a Igreja Católica, “a ideia de um Papa que renuncia é muito perturbadora, ainda mais se pensarmos no dogma da infalibilidade do Papa”. E profetizava, uma vez mais: “[Um dogma] que eu não sei se se vai manter por muitos anos, mas por agora permanece válido.” Permanecia. 
 


 
 

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