The Daily, um jornal para iPad muito tradicional

The Daily, o título inventado pelo magnata Rupert Murdoch para ser comprado e lido no iPad, tinha uma aura de inovação. Mas uma das razões por que falhou foi por ser, na essência, um jornal tradicional.

Reserve as segundas-feiras para ler a newsletter de João Pedro Pereira sobre inovação, tecnologia e o futuro.

O encerramento agora anunciado é o desfecho de um caso de excesso de entusiasmo com o iPad e com os restantes tablets (para onde o jornal se chegou a expandir). E é fácil perceber a atracção do aparelho da Apple.

Por um lado, a loja da Apple oferece uma forma de pagamento simples e em que os utilizadores confiam. Não é preciso convencer ninguém a passar por um processo de registo. Mas esta conveniência é uma espada de dois gumes: a Apple fica com 30% das receitas e (talvez mais importante) controla a relação com os assinantes – era com a Apple, e não com o jornal, que os leitores tinham uma relação de clientes. Foi por isto que o Financial Times decidiu, já há ano e meio, sair do ecossistema da Apple.

Por outro lado, o iPad oferece às redacções e aos gestores de media a possibilidade de lançar uma publicação muito mais próxima daquilo a que estão habituados na imprensa em papel. A paginação é cuidada e pensada para cada texto e fotografia; a publicação é feita em ciclos de 24 horas (o Daily fazia algumas actualizações, mas era essencialmente um híbrido de jornal e revista com periodicidade diária); os artigos não são comentados, muito menos criticados, por um público activo.

Apesar das tentativas de caracterizar The Daily como um novo tipo de jornal, não chegam vídeos e funcionalidades interactivas para que uma publicação tenha sucesso numa altura em que o consumo de informação está fragmentado: os consumidores dividem-se em plataformas várias (telemóveis, tablets, computadores; redes sociais, sites dos media, aplicações) e repartem a atenção por uma miríade de fontes de informação (de mensagens de políticos no Facebook até artigos de jornais internacionais).

Porém, fechados na sua aplicação para iPad, os artigos do Daily simplesmente não se disseminavam nas redes sociais e não geravam a conversa que, para lá da informação, tem de ser hoje objectivo do trabalho jornalístico. Também não eram indexados pelos motores de busca e o arquivo (que num site pode gerar tráfego, às vezes de forma inesperada, quando uma notícia antiga é redescoberta nas redes sociais) era essencialmente arquivo morto (o jornal punha alguns artigos na Web, aonde era possível motores de busca e não-assinantes chegar, mas eram quase sempre apenas ficheiros de imagem que capturavam o ecrã da aplicação...).

Mais do que isto, o Daily tinha a mesma estrutura dos congéneres em papel e esperava que isso pudesse vingar no ambiente digital: era um pacote de informação, uma tentativa de one size fits all, numa era em que a informação está desempacotada. Na Internet, a unidade jornalística não é a publicação (um jornal inteiro), mas o artigo (ou o vídeo, infografia, fotografia, etc). No mundo digital, a dieta mediática faz-se em unidades discretas, ao gosto de quem as consome – e quem as consome é cada vez mais capaz (em conjunto com a sua rede de contactos online, que recomendam artigos diariamente) de seleccionar exactamente o menu que quer.

Não significa isto que seja impossível encontrar no iPad e demais tablets uma forma de vender conteúdos. A Economist fá-lo com sucesso. Mas a Economist tem trunfos que o jovem The Daily não tinha: uma marca forte, internacional e dirigida a um público com poder de compra; e uma voz credível e assertiva sobre um assunto que é tema do dia todos os dias.

Por fim, no Nieman Journalism Lab (um site de reflexão sobre jornalismo da Universidade de Harvard), argumenta-se que os números do Daily seriam suficientes para manter saudável um negócio de jornalismo. Tinha mais de 100 mil assinantes, que davam ao jornal cerca de três milhões de dólares anuais. O que não era possível de manter, prossegue o argumento, era um jornal com as 200 pessoas que o Daily tinha; ou mesmo com apenas 100. Mas há uma falha neste raciocínio: com uma estrutura mais pequena, é difícil ter o conteúdo necessário para chegar aos números que fazem o negócio bater certo.
 
 

Sugerir correcção
Comentar