Vinte anos depois, Timor ainda procura as vítimas de Santa Cruz

Familiares das vítimas recordam durante uma manifestação em 2007 os que morreram em Santa Cruz
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Familiares das vítimas recordam durante uma manifestação em 2007 os que morreram em Santa Cruz Lirio Da Fonseca/Reuters
Jovens timorenses representam, em 2007, o que aconteceu no dia do massacre
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Jovens timorenses representam, em 2007, o que aconteceu no dia do massacre Lirio Da Fonseca/Reuters
O Presidente Jorge Sampaio e Xanana Gusmão no cemitério de Santa Cruz, em 2006
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O Presidente Jorge Sampaio e Xanana Gusmão no cemitério de Santa Cruz, em 2006 Rui Gaudêncio/Público
Timorense coloca boina das Falintil na campa de Sebastião Gomes, em 1999
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Timorense coloca boina das Falintil na campa de Sebastião Gomes, em 1999 Erik De Castro/Reuters
Max Stahl, em 1994, mostra em Lisboa a câmara com que filmou o massacre
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Max Stahl, em 1994, mostra em Lisboa a câmara com que filmou o massacre José Manuel Ribeiro/arquivo

Ouvem-se sirenes e tiros, muitos tiros. Há gente baleada no chão, gente a correr. E reza-se em português, tão longe de Lisboa. Foi há 20 anos o massacre que pôs os olhos do mundo em Timor-Leste, mas o país ainda procura as vítimas que morreram naquele dia.

Neste sábado, em Díli, os sinos voltam a tocar em memória das mais de 200 pessoas que morreram no massacre de Santa Cruz e haverá uma marcha até ao cemitério. No Palácio do Governo será exibido o filme “Timor à procura”, do jornalista britânico Max Stahl. Foi ele quem filmou o que aconteceu no cemitério de Santa Cruz. E foi ele que continuou a filmar, até hoje, o nascimento do primeiro país do século XXI.

O seu novo filme mostra os passos dos médicos e antropólogos forenses da Argentina e da Austrália que têm procurado desvendar o que aconteceu às vítimas, e mostra também a entrega às famílias dos restos mortais das primeiras 12 pessoas identificadas. Mas no final mantém-se a pergunta: “Onde estão?”. Segundo o Comité 12 de Novembro, uma organização de apoio às vítimas, 74 pessoas foram identificadas como tendo morrido no massacre e outras 127 morreram pouco depois. Mas as famílias ainda não recuperaram os corpos dos que desapareceram.

Timor ainda está à procura, a câmara de Max Stahl continua ligada como naquele dia 12 de Novembro de 1991. O jornalista britânico é hoje um activista de passaporte diplomático no bolso, mudou-se para Timor-Leste, criou em Díli o Centro Audiovisual Max Stahl onde trabalham cerca de 30 pessoas para preservar cerca de 1300 horas de imagens sobre a resistência timorense e o nascimento do novo país. Porque aquele 12 de Novembro, diz, “nunca se poderá esquecer”.

Homenagem a Sebastião Gomes

Sabia-se que as autoridades indonésias, que tinham invadido o país em 1975, iriam reagir, só não se sabia como. Naquela manhã, mais de 2200 juntaram-se em Díli para prestar homenagem a Sebastião Gomes, assassinado a 28 de Outubro pelas tropas indonésias na igreja de Motael, onde se tinha escondido um grupo de independentistas. Para essa altura estava prevista a visita a Timor-Leste de uma delegação de deputados portugueses e a ocasião seria aproveitada pela resistência timorense liderada por Xanana Gusmão. A viagem acabou por ser cancelada, mas a manifestação em memória de Sebastião Gomes saiu para a rua.

O protesto começou pelas 6h, com uma missa na igreja de Motael. Pela primeira vez, um grupo de jovens ousou pintar cartazes e ensaiar palavras de ordem. “Viva Xanana”, “Viva a resistência, “Não à integração”. Pouco depois começaram os primeiros confrontos com militares indonésios, quando os manifestantes passaram junto ao Palácio do Governo, até que, pelas 8h, o cemitério já estava rodeado por militares. Os manifestantes começam a rezar um terço junto à campa de Sebastião Gomes e ouvem-se os primeiros tiros.

Nessa altura Max Stahl já estava no cemitério. Tinha chegado a Timor em Setembro, fingiu ser turista para entrar no território e fazer um filme sobre a resistência para a Yorkshire Television, que pertencia à cadeia independente de televisão britânica ITV. Mas nem ele poderia imaginar que o seu filme iria correr mundo e ajudar a pôr fim ao longo silêncio sobre a repressão em Timor.

A entrevista a Xanana

Stahl estava em Baucau com membros da resistência quando lhe foi entregue uma mensagem a pedir que se deslocasse a Díli, recorda agora ao PÚBLICO, vinte anos depois. Pensava que iria finalmente entrevistar Xanana Gusmão, há várias semanas que tentava fazê-lo. “Estava com os guerrilheiros das Falintil [as Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste], a 8 de Novembro, e disseram-me que Xanana Gusmão tinha enviado uma mensagem para me deslocar a Díli. Pensei que fosse para uma entrevista com ele, que era muito difícil de conseguir. Já tínhamos cancelado várias vezes.”

Partiu a pé, durante a noite, caminhou durante quatro ou cinco horas quando foi travado pela polícia. Pensou que o facto de ser cidadão britânico o iria proteger, mas acabou por ser interrogado e passar a noite no posto de polícia, até que o deixaram partir. “Consegui convencê-los de que tinha estado numa vila, a visitar uma igreja, e depois tinha perdido o autocarro”.

Continuou então o seu caminho para Díli, e só aí é que lhe disseram que iria haver uma manifestação. Max Stahl decidiu filmar. “Era um momento interessante.”

Ficou a dormir numa casa secreta de um dos organizadores da manifestação, “todos sabiam que iria haver uma reacção por parte dos indonésios”. Talvez não fosse um massacre, diz Max Stahl, “mas uma reacção violenta era garantida”. A última manifestação, de pequena dimensão, tinha sido durante a visita do Papa João Paulo II a Timor-Leste, em 1989.

Escondido em Díli, Xanana Gusmão também se tinha preparado para a visita dos deputados portugueses que as autoridades indonésias acabaram por inviabilizar, alegadamente por discordarem da integração na delegação da jornalista australiana Jill Jolliffe, considerada próxima da resistência.

“Os timorenses acreditavam que a visita e o novo nível de envolvimento internacional eram um prelúdio para um referendo que sabiam que venceriam”, sublinha Sara Niner, investigadora e professora na Monash University, na Austrália, em Xanana, uma biografia política, que acaba de publicar.Aquela visita dos parlamentares portugueses seria a primeira após a invasão da Indonésia, a 7 de Dezembro de 1975, mas a delegação, cuja chegada estava prevista para 4 de Novembro, nunca aterrou em Timor.

Xanana Gusmão tinha-se preparado e esperava encontrar-se pessoalmente com os deputados. “Cortou o cabelo, aparou a barba e ensaiou um discurso para o que pensava ser a sua primeira aparição pública”, diz Niner.

Escrevia do esconderijo em Díli mensagens que terminava com “Das montanhas de Timor-Leste”. O cancelamento da visita foi uma desilusão, mas o líder da resistência acabou por aprovar a realização da manifestação de 12 de Novembro, durante a visita do relator especial da ONU para a tortura, Pieter Koojimans.

As faixas já estavam preparadas. Seriam mostradas bandeiras da Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (Fretilin) e da União Democrática Timorense (UDT), os dois partidos que integravam a resistência ao regime indonésio, em sinal de unidade. Mas os riscos eram elevados e Xanana deixou um alerta a Constâncio Pinto, um dos organizadores da manifestação, que é hoje embaixador de Timor-Leste em Washington. “Tenham cuidado.”

Uma longa caminhada para cemitério

Os manifestantes saíram cedo da igreja e durante a sua caminhada passaram por vários edifícios do Governo, da polícia ou do exército, com bandeiras de apoio à resistência, recorda Max Stahl, que os acompanhava de mota para chegar antes deles ao cemitério de Santa Cruz. “Para os indonésios, foi uma provocação. Todos ficaram à espera de uma reacção, de perseguições ou até da morte.”


A reacção não se fez esperar. “As pessoas estavam junto ao túmulo de Sebastião Gomes quando uma jovem pegou num megafone e pediu para deporem as bandeiras e rezar. Daí a poucos segundo começaram a disparar do lado de fora do cemitério. Dispararam espingardas automáticas, eram muitos.

Esvaziaram carregadores a menos de dez metros dos manifestantes, quase os podiam tocar”. A casa onde Xanana Gusmão estava escondido não era longe do cemitério de Santa Cruz, por isso o líder da resistência pôde ouvir os disparos. “Oh, meu Deus, eles estão a matar o meu povo. Como é que isto pôde acontecer? Porque é que uma manifestação pacífica foi esmagada com tamanha brutalidade?”, perguntou.

Já dentro do cemitério o massacre continuou, com os militares indonésios a assassinarem manifestantes com baionetas e facas, conta Max Stahl. Não havia maneira de fugir. O operador de câmara tentou proteger-se junto de um túmulo e muitos se aproximaram dele por ser estrangeiro. “Nem tentei fugir, estava a fazer o filme.”

Mesmo que tentasse fugir não teria sido fácil, o cemitério tinha sido cercado, em redor de Max Stahl “estavam jovens, quase crianças, ensanguentados, a morrer e a rezar”. Estava a meio do cemitério, a alguns metros da porta, tinha de decidir depressa o que fazer às cassetes e foi então que resolveu enterrá-las, junto a uma campa, envoltas numa bolsa de plástico. Só ficou uma cassete dentro da câmara que acabou por ser destruída pela polícia.

As informações sobre o massacre chegaram depressa à rede clandestina e ao actual Presidente timorense, Ramos-Horta, que nessa tarde informou a ONU, adianta Sara Niner. “Todos em Díli conheciam alguém que estava desaparecido. Nessa noite as casas das pessoas encheram-se de velas acesas e familiares a rezar.”

Max Stahl ainda teve esperança de que a nacionalidade britânica o livrasse de um interrogatório, mas não. Foi ouvido pela polícia durante dez horas e era já madrugada quando voltou ao cemitério para tentar recuperar as cassetes. Conseguiu. Entregou uma parte à jornalista holandesa Saskia Kouwenberg e outra a um padre português que morava no Japão mas estava de visita a Timor e de cujo nome já não se recorda.

Poucos dias depois, as imagens do massacre seriam transmitidas por estações de televisão de todo o mundo e causaram uma forte indignação em Portugal, faltavam ainda quase nove anos para que os timorenses pudessem votar em referendo e escolher a independência, em Agosto de 1999.

De Díli Max Stahl partiu para Banguecoque, de onde enviou novas imagens para a Yorkshire Television. Voltaria a Timor em 1993, com um passaporte falso arranjado por membros da resistência, desta vez para entrevistar Konis Santana, que sucedeu a Xanana Gusmão depois de este ter sido detido, em 1992. E regressaria definitivamente em 2003, para viver em Timor, onde casou com uma pediatra australiana e teve dois filhos – Leo, de cinco anos, que tem como padrinho o Nobel da Paz e actual Presidente de Timor, José Ramos-Horta, e Malin, de dois anos. “Timor é um país fantástico para uma criança. Tem as praias, as montanhas, o bom tempo todo o ano. É uma forma bonita de crescer.”

A procura continua

Dez anos após a independência, Timor-Leste é também um país onde não falta o que fazer. “Há muitos desafios a nível das instituições, na saúde, na educação”, diz Max Stahl. “As instituições ainda são fracas e falta profissionalismo, o que é um problema sério”. O desemprego ultrapassa os 20% e afecta sobretudo os jovens, mais de 40 por cento da população vive na pobreza. “São precisos recursos humanos relevantes para o futuro do país, é preciso resolver as contradições políticas e técnicas e há sempre a possibilidade de instabilidade e violência.”

Nada disso impediu Stahl de criar o seu centro audiovisual e ficar em Timor. Daquele dia 12 de Novembro recorda quase todos os instantes. “Na altura quase ninguém acreditava na independência. A vitória dos timorenses é uma prova de que nada é impossível na vida política.”

As imagens do massacre levaram à criação de grupos de solidariedade em vários países, de Portugal à Austrália, da Alemanha à Malásia ou ao Brasil. O massacre “foi um momento muito importante para toda a luta, não terminou com a ocupação mas deu um empurrão para apressar e resolver o problema de Timor-Leste, disse esta semana aos jornalistas Gregório Saldanha, o coordenador do Comité 12 de Novembro.

Saldanha tinha 28 anos na altura do massacre, ficou ferido, foi detido e condenado a prisão perpétua, tendo sido libertado em 1999. Agora a sua prioridade é encontrar os restos mortais das vítimas, espalhadas em valas comuns fora de Díli, em locais que só os militares indonésios conhecem. É uma questão de justiça, disse à agência Lusa. “E justiça significa que a população tem o direito de saber onde estão os seus filhos, os seus pais, os seus maridos.”

Só em Abril de 2009 é que foram exumados 16 corpos no cemitério de Hera, a leste de Díli, por uma equipa do Instituto de Medicina Forense de Victoria, na Austrália, e de um instituto de antropologia forense de Buenos Aires, na Argentina. A descoberta foi possível devido à colaboração de uma pessoa que terá estado envolvida no enterro das vítimas após o massacre. “É um número muito pequeno”, considerou Gregório Saldanha. “Mas já é um grande alívio.”

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