Proposta de meio dia de trabalho vai beneficiar “muito poucos”

Debate sobre medidas de incentivo à natalidade, apresentadas pelos vários partidos, é esta quarta-feira na Assembleia da República. Mas para os especialistas não é garantido que as propostas vão resolver o problema da natalidade em Portugal.

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Para os especialistas, o combate tem estado demasiado centrado nas mulheres grávidas Paulo Pimenta

Uma das propostas em discussão nesta quarta-feira na Assembleia da República, no debate sobre a natalidade, é da maioria PSD-CDS e prevê que os funcionários públicos com filhos ou netos até 12 anos possam trabalhar meio dia, recebendo 60% do salário. Vanessa Cunha, do Observatório das Famílias e das Políticas de Família, não tem dúvidas de que “só vai beneficiar uma fatia pequena da população”: “A grande maioria das pessoas não pode abdicar de 40% do rendimento.”

Da medida podem beneficiar os funcionários públicos que tenham filhos ou netos menores de 12 anos, ou, no caso dos pais, filhos com deficiência ou doença crónica, independentemente da idade. O trabalhador não é prejudicado na contagem integral do tempo de serviço para efeito de antiguidade.

Para Vanessa Cunha, doutorada em Sociologia da Família e da Vida Quotidiana pelo ISCTE, a medida vai “aumentar as desigualdades sociais no acesso à paternidade”: “Uns podem abdicar de 40% do salário, outros não. Serão muito poucos os que podem abdicar.” Lembra que “a grande maioria da população já não tem rendimentos que se ajustem às necessidades elementares, às despesas fixas” e que se tem assistido a uma “escalada de incumprimentos das famílias”.

Segundo dados da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público, de Outubro do ano passado, o salário base médio no sector público – sem suplementos e incluindo administração central, regional e local – é de 1389 euros.

A proposta “vai atingir grupos da população com mais bem-estar económico. “Vão aproveitar a medida, para estarem mais com os filhos, mas a decisão de os ter não depende dela”, diz Vanessa Cunha.

O professor da Universidade Católica, Joaquim Azevedo, que chefiou, a pedido do presidente do PSD e primeiro-ministro, Passos Coelho, uma equipa para elaborar um relatório com propostas para a natalidade, admite que a medida abrangerá sobretudo famílias com “algum rendimento”. Mas ressalva: “É preciso perceber que uma política de incentivo à natalidade não se traduz apenas em injectar dinheiro nas famílias com mais dificuldades.”

A directora do serviço de pediatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, Maria do Céu Machado, que também fez parte do grupo de trabalho, explica que “a lei já prevê que quem tem filhos até 12 anos possa trabalhar a tempo parcial: “O que se faz é subir de 50% para 60% a remuneração.”

Armadilha para mulheres
Vanessa Cunha insiste que a medida tem “outras armadilhas”, como não contribuir para a igualdade de género. “Quando se fala em tempo parcial, estamos a falar de trabalho feminino, nunca masculino”, alerta, acreditando que os homens também podem ser “prejudicados” pelos empregadores, se decidirem avançar.

E questiona por que razão é a medida da meia jornada só para funcionários públicos? “Porque uma alteração como esta, que é profunda, teria de ir à Concertação Social. E a Assembleia da República não tem lugar na Concertação Social, teria de ser proposto pelo Governo”, esclarece o deputado do PSD Hugo Soares.

Na semana passada, porém, o ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, Mota Soares, frisou que até Julho estará disponível um programa de apoio ao trabalho a tempo parcial de pais e mães de crianças pequenas.

Eleitoralismo?
O investigador na Universidade do Minho na área da geografia humana e professor da Universidade de Coimbra Paulo Nossa questiona o timing do anúncio: “As legislativas vêm aí, é a altura certa.”

Ainda assim, destaca “a meia jornada” na função pública, com remuneração a 60%. “É um sinal de que é possível conciliar, passa essa mensagem forte aos empresários. E é um sinal de solidariedade intergeracional”, diz, referindo-se ao facto de incluir os avós.

O investigador considera ainda relevantes as propostas de penalização das empresas que despeçam grávidas. A maioria quer impedir que as empresas condenadas por estas práticas, nos dois anos anteriores, possam beneficiar de quaisquer subsídios ou subvenções públicas. “É um sinal muito grande ao tecido empresarial.” Outros partidos também têm propostas para combater o problema, como, por exemplo, o PCP e o BE.

Além de concordar com esta fiscalização, Vanessa Cunha destaca o projecto de lei do PSD e CDS-PP, que prevê que o ensino pré-escolar passe a ser universal a partir dos quatro anos de idade, no próximo ano lectivo. E considera “urgente” a reposição do abono de família. PSD e CDS recomendam ao Governo a reposição já na próxima legislatura dos 4.º e 5.º escalões. PS, PCP e BE também têm propostas para reforçar o abono.

Vanessa Cunha atribui ainda relevância ao facto de a maioria querer alargar a licença de paternidade obrigatória do pai de dez para 15 dias. “São medidas de igualdade entre o casal. É uma mensagem para o empregador.” O BE, por exemplo, defende o aumento da licença obrigatória do pai de dez para 20 dias, acrescido de mais 15 dias a serem gozados em simultâneo com a licença da mãe.

Que resultados esperar?
Joaquim Azevedo diz que, das propostas do relatório, foram incluídas no pacote da maioria, entre outras, o trabalho em part time, a universalidade do pré-escolar e a vacinação. Houve, no entanto, ideias que ficaram de fora: “Propúnhamos vales sociais de apoio à educação e uma redução ainda maior no IRS para famílias com mais filhos. Mas compreendemos o impacto económico que teria no contexto do país.”

Que resultados se podem esperar? “Não sabemos bem em Portugal o que vai acontecer. Sabemos que, se houver uma política pública articulada e consequente ao longo dos anos, isso pode vir a ter efeitos na natalidade”, defende Joaquim Azevedo.

Para Vanessa Cunha, “nenhuma medida tem impacto imediato”: “Podem ter ao nível do bem-estar das famílias, mas não ao nível dos comportamentos reprodutivos. Isso implica uma necessidade de confiança. Mais do que a medida A ou B, o importante é haver estabilidade nas medidas públicas.” E, “hoje em dia”, o cenário “é de total instabilidade”: “As pessoas tinham um determinado quadro de políticas públicas e as medidas foram drasticamente reduzidas com a austeridade que, na forma como foi aplicada em Portugal, foi antinatalidade.” Frisa que “os pilares da decisão reprodutiva são o emprego, rendimentos condignos e políticas de conciliação família-trabalho”.

Maria do Céu Machado recorda que participou num estudo com mais de três mil estudantes universitários em 2013 e que 80% queriam ter filhos. “Falavam em adiar a parentalidade por causa do desemprego, da precariedade, da carreira.” Lembra que “ter filhos há 20 ou 30 anos era uma obrigação geracional”: “Agora é uma opção racional. As pessoas fazem contas. Para ter um filho ou dois, quanto é que é preciso? Fraldas, leite, infantário. Estas medidas podem fazer alguma diferença para quem quer ter filhos.”

A demógrafa Maria João Valente Rosa e também coordenadora da base de dados Pordata, já tinha defendido que seria importante conhecer os custos das propostas e os impactos esperados. Quando apresentou o pacote da maioria, o líder parlamentar do PSD escusou-se a apontar valores, mas garantiu que o grupo parlamentar fez estimativas do custo das medidas e que as despesas são comportáveis. O PÚBLICO pediu essas estimativas, mas Luís Montenegro justificou que, para já, são documentos internos.

Céptico está o director do serviço de obstetrícia do Hospital de Santa Maria. Para Luís Graça, só ultrapassando os condicionalismos económicos e sociais e fazendo com que os jovens que emigraram – e estão em idade fértil – regressem é que será possível alterar a situação. “O resto é tudo fantasia, balelas para enganar a população.” Nem a medida do meio dia de trabalho e salário a 60% o convence. Dá um exemplo: uma secretária que ganha 600 euros por mês consegue sobreviver com 300 e tal euros?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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